quinta-feira, 19 de fevereiro de 2015

A FILOSOFIA PRÁTICA DE KANT: DEONTOLOGIA E TELEOLOGIA

A FILOSOFIA PRÁTICA DE KANT: DEONTOLOGIA E TELEOLOGIA

REVISTA CIENTÍFICA DA UFPA - EDIÇÃO N° 03, MARÇO, 2002

A FILOSOFIA PRÁTICA DE KANT: DEONTOLOGIA E TELEOLOGIA

Kézia Pimentel Magalhães (kezinha@hotmail.com)

Bolsista PIBIC/CNPq, Departamento de Filosofia, Centro de Ciências Humanas, Universidade

Federal do Pará.

Profa. Dr3. Ângela Maroja (amaroja@nautilus.com.br)

Departamento de Filosofia, Centro de Ciências Humanas, Universidade Federal do Pará.

ABSTRACT

In contemporary philosophy, the deontological character of the kantian practical philosophy is taken as something unquestionable. Thus, through the kantian concept of highest good, one can reflect on the possibility of an effectively deontological moral, as Kant’s to be able to hold a concern with the happiness and, therefore, a certain conception of good. Thus, our analysis consisted in investigating how, effectively, established ethical principles in a deontological horizon is opposed to principles of teleologic character, or if we can conceived both as complementary practical perspectives.

1. INTRODUÇÃO

Comumente entendemos, o registro prático da filosofia kantiana como dominada por uma perspectiva deontológica, no sentido em que ela privilegia, entre as propriedades da interação interpessoal, a conformidade a certas normas de caráter obrigatório e universal, onde a idéia de respeito recíproco assume um valor intrínseco, revestindo-se da dignidade de um dever moral a ser cumprido. Desse modo, e como conseqüência, a ética kantiana parece distinguir-se de outras concepções (de caráter teleológico), cujos princípios repousariam principalmente na avaliação de modos de agir e condutas que se conformam a um determinado fim a ser alcançado e tido como um bem, seja ele a felicidade, a excelência humana ou mesmo o prazer. Aqui, é concedida uma prioridade ao conceito de bem, prioridade que estaria ausente na perspectiva deontológica, onde é conferida uma prioridade do justo sobre qualquer outro bem.

Em nossa pesquisa confirmamos tais pressupostos através das seguintes etapas. Num primeiro momento, seguindo P. Ricoeur, assumimos a ética aristotélica como o melhor exemplo de uma perspectiva teleológica. Depois, para caracterizar a perspectiva deontológica, assumimos, sem discutir, mas em caráter provisório (seguindo ainda P. Ricoeur) a moral kantiana como o modelo deste último ponto de vista. Aqui, tornou-se necessário aprofundarmos o conceito kantiano de liberdade, uma vez que (e isso caracterizando o segundo e conclusivo momento da pesquisa) tal conceito mostrou-se indispensável para finalmente, mediante a problematização do conceito kantiano de soberano bem, discutirmos até que ponto a filosofia moral de Kant pode comportar uma concepção de bem.

2.    METODOLOGIA

Os procedimentos metodológicos seguidos nessa atividade de pesquisa obedecem às regras que são próprias da investigação filosófica. Isso significa que se trata de uma pesquisa eminentemente bibliográfica, que foi desenvolvida a partir da identificação, leitura, análise e interpretação de fontes bibliográficas, sobretudo fontes primárias como: a Ética a Nicômaco e a Política de Aristóteles; A religião nos limites da simples razão, a Crítica da razão Pura, a Crítica da Razão Prática, a Fundamentação da Metafísica dos Costumes e a Metafísica dos Costumes de Kant; Uma investigação sobre os princípios da moral e os Ensaios morais, políticos e literários de Hume e etc.

3.    RESULTADOS

Tomando como ponto de partida a teoria moral aristotélica, tornou-se inevitável notarmos, com Roger Sullivan, que a moral, em Aristóteles, se iniciaria na Ética a Nicômaco com uma "revelação moral do individual” e somente na Política estender-se-ia para uma ordem pública (An Introduction to Kant's Ethics, p.1) . Verificamos que a problemática do individual e do público acaba por culminar na primazia, estabelecida por Aristóteles, do interesse comum sobre o interesse individual, primazia que consideramos importante analisar, até porque, Gadamer, em seu livro Verdade e Método, chama-nos atenção para a superioridade da ética antiga sobre a filosofia moral da idade moderna observando que a primeira possibilita a "passagem da ética à política”, graças ao seu enraizamento na tradição, ou seja, na história (Verdade e Método, p.421).

Por outro lado, segundo Tugendhat, muitos comentadores e críticos de Aristóteles acabam por considerar a Ética a Nicômaco uma espécie de tratado sobre a felicidade, pois o fim último das ações visaria a felicidade, colocando em questão se as virtudes, citadas na referida obra, são de fato, virtudes morais, ou virtudes de felicidade (Lições sobre ética, 13alição, p.269). Dada a importância que a felicidade assume dentro da ética aristotélica, consideramos que seria estratégico investigarmos, paralelamente a esta análise, o utilitarismo de David Hume, de Jeremy Betham e de John Stuart Mill também com ela preocupados.

Assim, segundo David Hume, "o objetivo fundamental de todo o esforço humano é alcançar a felicidade” (Ensaios morais, políticos e literários, p. 211). Jeremy Bentham parece reforçar e complementar esta idéia de Hume quando diz que "a natureza colocou o gênero humano sob o domínio de dois senhores soberanos: a dor e o prazer”. Bentham continua, declarando que somente a eles compete apontar o que devemos fazer, bem como determinar o que na realidade faremos... o princípio da utilidade reconhece esta sujeição e a coloca como fundamento desse sistema, cujo objetivo consiste em construir o edifício da felicidade...” (Uma introdução aos princípios da moral e da legislação, cap.I, p.3). Observamos com John Stuart Mil que, de acordo com a opinião utilitarista, a finalidade da ação humana é a felicidade, a qual também define o padrão de moralidade almejado. Mill acrescenta, ainda, que o modelo utilitarista de moral não visa "... a maior felicidade do próprio agente, mas a maior soma de felicidade conjunta” (Utilitarismo, cap.II, p.194). Ora, Aristóteles entende por "...cidade melhor governada aquela em que o regime promove a felicidade no maior grau possível...” (Política, livro VII, cap. 13, p.529), o que implicaria dizer que o melhor regime é aquele que visa o interesse comum (fins coletivos), identificando este com a felicidade política. Assim, "...os regimes que se propõem atingir o interesse comum são retos... os que apenas atendem aos interesses dos governantes são defeituosos...” (Idem, livro III, cap.7, p.211). Portanto, poderíamos, num esforço argumentativo, concluir que Aristóteles pode ter servido de fonte para algumas teorias utilitaristas modernas e contemporâneas também centradas na preocupação com a felicidade.

Em algumas passagens da Política e da Ética a Nicômaco, pudemos observar que o próprio Aristóteles parece enquadrar sua ética no utilitarismo. Assim, por exemplo, quando ele reconhece (na Política) que, "apesar de não carecer de auxílio mútuo, os homens desejam viver em conjunto; também é verdade que estão unidos pela utilidade comum, na medida em que, a cada um, corresponde uma parcela de bemestar” (Ibidem, livro III, cap.6, p.207).

Poderíamos então dizer que o bem agir em Aristóteles tem um valor simplesmente instrumental em relação ao bem-estar e à felicidade comum dos homens. Nesse sentido, a perspectiva prática kantiana, contrariamente à teleologia de cunho utilitarista, poderia ser tachada, enquanto deontológica, de anti-utilitarista. Poderíamos citar como exemplo do antiutilitarismo de Kant, uma passagem da primeira seção da Fundamentação da Metafísica dos Costumes onde ele observa, fazendo um pequeno comentário sobre o valor absoluto da vontade, que "a utilidade e a inutilidade nada podem acrescentar ou tirar a este valor” (Fundamentação da Metafísica dos Costumes, 1a seção, p.206). Na Analítica da Segunda Crítica Kant parece reforçar seu anti-utilitarismo. Diz ele que a "...razão prática... abandona a vantagem, une-se ao que lhe conserva o respeito pela sua própria pessoa...” (Crítica da Razão Prática, Analítica da Razão Pura Prática, cap. III, p. 108).

Concordando com o anti-utilitarismo e tomando como base a teoria moral de Kant, Rawls nos apresenta em seu livro Uma Teoria da Justiça, uma proposta contratualista que serviria como uma alternativa ao utilitarismo, destacando, sobretudo, sua concepção de justiça como eqüidade. Aqui, Rawls define seu próprio ponto de vista (de raízes kantianas) contrapondo-se ao utilitarismo que "... é uma teoria teleológica ao passo que a justiça como equidade não o é. Por definição, portanto, a segunda é uma teoria deontológica, que ou não especifica o bem independentemente do justo, ou não interpreta o justo como maximizador do bem” (Uma Teoria da Justiça, cap.I, § 6, p.32).

O que Rawls mais critica na visão utilitarista é que nela não importa, exceto indiretamente, o modo como a soma de satisfações (que nos referimos a pouco) se distribui entre os indivíduos. Assim como não importa, exceto indiretamente, o modo como o homem distribui suas satisfações ao longo do tempo. A distribuição correta nesta visão é aquela que permite a máxima realização, o grau máximo de felicidade (Idem, cap.I, § 5, p.27). Talvez tenha sido este motivo que levou Rawls a identificar, neste mesmo trecho, a teoria moral e política aristotélica com o perfeccionismo, teoria teleológica onde o bem é tomado como a realização da excelência humana nas diversas formas de cultura.

Como bem observou Tugendhat, a verdade é que em Aristóteles "só pode ser bom aquele que é orientado para o bem em seus afetos... em suas inclinações” (Lições sobre ética, sexta lição, p.126). Este caráter de afetividade da moral aristotélica iria de encontro com algumas formulações rigoristas de Kant onde a moralidade exclui inclinações e desejos. Em outros termos, não há em Aristóteles um "efeito de constrangimento”, efeito que, segundo P. Ricoeur, estaria indissociavelmente ligado à idéia de universalidade (O si mesmo como um outro, oitavo estudo, p.241) e ambos, o efeito de constrangimento e a validade universal das normas, estando relacionados com uma perspectiva deontológica. Em Aristóteles, não há nenhuma lei que determine a vontade independentemente das inclinações e o fim (felicidade), identificado na Ética a Nicômaco com o bem-viver, não é entendido separadamente dessas inclinações, já que seria "...um fim ao qual visa o desejo” (Ética a Nicômaco, livro VI, cap.2, p.342). Logo, não poderíamos dizer que o sistema ético aristotélico comportaria um fim tomado como um dever, posto que um fim, assim entendido, estaria indissociavelmente ligado a um caráter moral obrigatório. Como pudemos observar, na Política, Aristóteles fala que "... a vida preferível será necessariamente a mesma tanto para cada indivíduo em particular, como para as cidades e os homens tomados em comum” (Política, livro VII, cap.3, p.493). Este caráter da ética centrado no que é preferível parece ilustrar perfeitamente essa ausência de um caráter obrigatório (traduzido pela lei moral). Ora, sobre a possibilidade de escolher um modo de vida preferível, é necessário notarmos que uma perspectiva deontológica jamais admitiria preferências, exigindo, ao contrário, uma vida em respeito ao dever. Pudemos desta forma concluir que, no que diz respeito ao enraizamento da virtude moral aristotélica no desejo, contradizendo a determinação pura da vontade na moral kantiana, as virtudes, em Aristóteles, teriam um caráter propriamente teleológico e não deontológico. Isto posto, podemos, contudo, conceder com Tugendhat que o fato da virtude, em Aristóteles, depender dos costumes de uma sociedade (virtudes sociais) e não se mostrarem como exigências morais universais, isto não implica dizer que a virtude em Aristóteles seria contrária a tal exigência (Lições sobre ética, 13a lição, p.277).

Os traços acima destacados permitiram-nos caracterizar Aristóteles como o grande representante da teleologia. Nesse sentido, poderíamos ainda enfatizar o caráter efetivo de sua ética (onde os preceitos para o bem agir são definidos em cada circunstância particular) por oposição ao apriorismo universalista da moral kantiana. O valor dado à sabedoria prática - phronesis (enquanto norma moral situada em um contexto particular) e, sobretudo, a primazia do conceito de bem em relação ao de justiça, confirmam o enquadramento da teoria moral aristotélica em um horizonte teleológico. Entretanto, a despeito da preeminência que o conceito de bem adquire no horizonte ético teleológico, isto não quer dizer que Aristóteles ficou indiferente ao papel da justiça em relação à organização da vida pública na cidade, no sentido de considerar textualmente que o desvio da mesma poderia levar à dissolução dos regimes (Política, livro I, cap.13, p. 93).

Feita a análise da ética aristotélica, achamos necessário fazer um pequeno esclarecimento sobre o conceito de liberdade, antes de analisarmos o nosso tema central, até porque, o próprio Kant considera que "prático é tudo aquilo que é possível pela liberdade” (Crítica da Razão Pura, Doutrina Transcendental do Método, cap. II, laseção, p. 636 - A800/B828). Henry Allison, comentando Lewis Beck, afirma que Kant nos apresenta diferentes concepções de liberdade, e vai tratar este conceito de inúmeras formas. Por isso, partimos da Primeira Crítica, onde analisamos, sobretudo, a Terceira Antinomia, a terceira parte da nona seção do cap. II do segundo livro da Dialética Transcendental e o Cânon da Doutrina Transcendental do Método, antes de nos determos na Dialética da Segunda Crítica.

A despeito da diferença de tratamento que Kant dá à liberdade em diferentes momentos de suas obras, utilizando vários comentadores como Allison, Beck, Gadamer, Nancy, Ricoeur, Sullivan e Tugendhat vimos que o problema em questão consiste, grosso modo, na tentativa de fazer com que a liberdade possa não apenas ser possível (pensável sem contradição) mas lhe atribuir uma realidade objetiva. Somente na Analítica da Critica da Razão Prática, Kant parece alcançar este objetivo, onde através da lei moral a liberdade, sem necessitar de um tratamento empírico, tal como no Cânon, torna-se real. Assim, Ricoeur nos diz que a liberdade prática conteria, então, dois traços poder e realidade objetiva (O conflito das interpretações, cap.V, p.408). A importância de atribuir realidade objetiva à liberdade prática se justifica, em Kant, pela necessidade prática de nós pensarmos nossa existência em um mundo efetivamente moral.

Sobre nossa análise a respeito do conceito de soberano bem, nosso trabalho consistiu em mostrar que aquilo que a Analítica da Crítica da Razão Prática separou em termos rigoristas, como oposto e irreconsiliável, isto é a preocupação com a felicidade e a realização de nossos deveres morais, a Dialética da mesma crítica vai unir. Graças à exigência de totalidade que lhe é própria, a Dialética da Razão Pura Prática vai, então, conectar moralidade e felicidade, concedendo, contudo, uma primazia da primeira sobre a segunda. Dada a preeminência da moralidade sobre a felicidade, esta última não vai ser posta pelo soberano bem segundo fundamentos prudenciais e sim deontológicos, tornando-se, por isso mesmo, o conceito de dignidade de ser feliz. Esta última noção é de suma importância dentro do sistema moral kantiano, pois para que a felicidade possa se revestir da dignidade é preciso que haja respeito recíproco entre os homens, noção implícita no conceito de humanidade (expresso na segunda formulação da lei moral, e que faz dela, ao nosso ver, a formulação mais importante).

Assim, a humanidade destacaria o valor moral intrínsico que reside em cada um de nós (Fundamentação da Metafísica dos Costumes, 2a seção, p.229).

É importante enfatizar que, apesar do soberano bem se configurar, na filosofia prática kantiana, como "... o fim supremo necessário de uma vontade moralmente determinada” e sabermos que "no soberano bem... a virtude e a felicidade são pensadas como necessariamente unidas” (Crítica da Razão Prática, cap.II da Dialética da Razão Pura Prática, p. 132 e 134), a virtude (condição suprema) é tratada aqui não como phronesis, como seria em Aristóteles, mas como mérito de ser feliz ( conformidade das intenções à lei moral).

Desta forma, a teoria moral kantiana jamais pode ser considerada uma teoria da felicidade, como Tugendhat sugere que o foi a ética Aristotélica. É necessário lembrarmos que para Kant, "a felicidade, isoladamente, está longe de ser para a nossa razão o bem perfeito. A razão não a aprova (por mais que a inclinação a possa desejar) se não estiver ligada com o mérito de ser feliz, isto é, com a boa conduta moral” (Crítica da Razão Pura, Doutrina Transcendental do Método, cap. II, 2a seção, p. 644 - A813/B841). Desta forma, a boa conduta moral consistiria na independência relativamente à inclinação que, segundo Kant, é "cega e servil”, e mesmo que seja de boa qualidade (conforme ao dever), como por exemplo a beneficência, a respectiva ação conterá legalidade, mas não moralidade. Tanto na Fundamentação da Metafísica dos Costumes quanto na Segunda Crítica, Kant observa que a beneficência estaria ligada à busca de honra e de felicidade. E, na verdade, aqueles que praticam uma ação deste gênero costumam utilizar a figura do outro como meio para alcançar algum mérito. O ato de tomar o outro como simples meio iria de encontro com o que nos prescreve a segunda formulação da lei moral, a saber: "age de tal maneira que uses a humanidade, tanto na tua pessoa como na pessoa do outro, sempre simultaneamente como fim e nunca como meio” (Fundamentação da Metafísica dos Costumes, 2a seção, p.229). Na Religião, Kant parece admitir somente dois tipos de motivação, a saber, ou as máximas são motivadas pelo amor-de-si (egoísmo) ou pela moralidade, a benevolência permanecendo parte constituinte daquele primeiro tipo de motivação (A religião nos limites da simples razão,nota n°7 da Primeira Parte, p.51).

Apesar de Kant não nos dar, no decorrer de suas obras, muitas alternativas para entendermos a beneficência de uma forma menos radical, em sua obra Kant on Freedom, Law and Happiness recentemente publicada Paul Guyer interpreta o quarto exemplo kantiano da beneficência de modo não-rigorista. Segundo Guyer, este último seria a base para a reivindicação de que a lei moral não exige somente que nós reconheçamos constrangimentos legais sobre a busca individual da felicidade, mas que nós efetivamente devemos buscar a felicidade de todos dentro desses constran5gimentos. Paul Guyer observa, ainda, que este dever de benevolência vai ser particularmente clarificado na Doutrina da Virtude da Metafísica dos Costumes onde ele parece dar lugar a um dever verdadeiramente universal de benevolência mútua (conforme o princípio de igualdade). Desta forma, o exercício da benevolência universal, incluiria a idéia de humanidade (expressa na segunda formulação da lei moral) e seria o dever final comandado por esta mesma lei (Kant on Freedom, Law, and Happiness, cap.10, p.341-342). Com a interpretação de Guyer podemos ter uma visão menos rigorista a respeito da beneficência, na qual seria possível também concebermos a felicidade como parte da própria virtude moral, uma vez que, ao nos ajudarmos mutuamente estaríamos, talvez, contribuindo para nos tornarmos mais felizes.

A despeito de como a benevolência pode ser entendida no sistema moral kantiano, se estamos aqui admitindo, através do conceito de soberano bem, que um sistema deontológico pode incorporar uma concepção de bem, se faz necessário entendermos que esta concepção de bem não vai ter as mesmas características de uma concepção de bem teleológica. Como nos diz Lewis Beck, o soberano bem é uma "totalidade incondicio6nada”, porque inclui a noção de um fim supremo que une sistematicamente todos os outros fins (unidade perfeita de fins). Quando Kant fala em fim supremo parece aproximar-se daquele que designa um fim tomado como um dever (que como já vimos, tem características diferentes do fim apresentado pela perspectiva teleológica aristotélica) já que aquela noção parece ser indissociável da própria moralidade. Nos termos de Kant, na Doutrina da Virtude da Metafísica dos Costumes, trata-se de "...um fim que possa ser oposto ao fim oriundo dos impulsos sensíveis, ...o conceito de um fim que é ao mesmo tempo um dever...” (Métaphysique des Moeurs, p.658-659). Estaria aí a prova de nossa hipótese inicial onde sistemas deontológicos e sistemas teleológicos, apesar de diferentes, não são necessariamente opostos.

P. Ricoeur se propõe, segundo ele próprio, sem preocupação de ortodoxia aristotélica ou kantiana, defender a primazia da ética sobre a moral, ou seja, da teleologia sobre a deontologia, apesar de reconhecer a necessidade da teleologia passar pelo "crivo da norma” (deontologia). O sistema moral kantiano, ao contrário de Ricoeur, parece não admitir como ponto de partida a teleologia. Assim, por exemplo, como vimos, o conceito de soberano bem, e graças a exigência de totalidade que lhe é inerente, liga o que a Analítica havia separado, admitindo, porém, explicitamente o primado deontológico da moralidade sobre a busca da felicidade. Tomar como ponto de partida a teleologia seria, no mínimo, admitir que nós temos escolha diante desta lei, ou seja, teríamos que admitir que a lei moral é flexível, e se é flexível, os homens estariam desobrigados de segui-la. Se admitíssemos essa flexibilidade, as ações decorrentes disso estariam, no máximo, em conformidade à lei, mas nunca traduziriam o respeito pela lei. Segundo Roger Sullivan, não podemos estar isentos de tais obrigações e nada justifica o não cumprimento da lei, porque a negação do imperativo categórico resultaria na reinvidicação autocontraditória de que a liberdade pode ser compelida (An Introduction to Kant’s Ethics, p.47). Assim, a afirmação de uma possível aproximação entre deontologia e teleologia estabelecida pelo conceito de soberano bem, parece ser, ao nosso ver, tão importante quanto a negação da possibilidade de haver, em Kant, uma primazia da teleologia (de princípios éticos) sobre a deontologia (princípios morais). O próprio "ideal” traduzido pelo conceito de soberano bem poderia se tornar uma quimera se aceitássemos tal primazia, pois, como nos diz Henry Allison, só quando assumimos a realidade da obrigação moral como fato da razão é que reconhecemos, ao mesmo tempo, o dever de nos esforçarmos para a realização do soberano bem (Kant’s theory of freedom, p.67).

4. CONCLUSÃO

Podemos observar que quando Habermas, em sua obra Direito e Democracia, mantém a oposição entre deontologia e teleologia está movido pelo seu interesse em encontrar para as normas jurídicas o papel de mediador para a auto-organização de comunidades jurídicas que se afirmam, num ambiente social, sob determinadas condições históricas. Nesse sentido, e ainda seguindo Habermas, tal oposição também justifica a função mediadora do Direito entre a moral (no sentido propriamente deontológico do termo) e a dimensão ético-política da razão prática em busca de fins coletivos. Mas, na caracterização dos dois sistemas, todos os comentadores e filósofos que utilizamos parecem concordar mais ou menos entre si. Assim, concluímos através desta Pesquisa de Iniciação Científica que existe, dentro do sistema moral kantiano (que em alguns momentos se revela como rigorista), pelo menos uma via de aproximação entre estas perspectivas práticas. Entretanto, apesar de termos tentado comprovar, através de nossa análise sobre o conceito de soberano bem, que um sistema deontológico pode incorporar uma concepção de bem, observamos, em contrapartida, que um sistema teleológico (como o de Aristóteles) não pode comportar um fim que seja tomado como um dever, já que um fim, assim concebido, teria de ser (como nos diz Kant na Doutrina da Virtude da Metafísica dos Costumes, p.658-659) oposto ao fim oriundo dos impulsos sensíveis. Em Aristóteles, efetivamente, o fim seria "...um fim ao qual visa o desejo” (Ética a Nicômaco, livro VI, cap. II, p.342). Todavia, a aproximação estabelecida, fundamentalmente, pelo conceito de soberano bem e o ideal que ele representa dentro da moral kantiana, nos certifica que, apesar da perspectiva deontológica ser diferente da perspectiva teleológica, não há oposição necessária entre estas perspectivas, até porque pensamos que é possível fazer uma leitura correta da moral kantiana abrindo mão do rigorismo, isto é, da oposição entre dever moral e inclinações sensíveis (desejo).

BIBLIOGRAFIA

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quarta-feira, 18 de fevereiro de 2015

Kant sobre o fim das religiões históricas


NATUREZA HUMANA COMO DOMÍNIO DE APLICAÇÃO DA RELIGIÃO DA RAZÃO

NATUREZA HUMANA COMO DOMÍNIO DE APLICAÇÃO
DA RELIGIÃO DA RAZÃO
1
ZELJKO LOPARIC
PUCSP / Unicamp
loparicz@uol.com.br
Resumo: Depois de formular, de modo esquemático, o problema fundamental de religião em Kant – o de
decidir se o homem é moralmente bom ou mau –, o artigo trata do conceito kantiano de religião da razão,
enfatizando que Kant propõe uma doutrina da religião sem Deus, embora não sem a idéia de Deus. Na
seqüência, desenvolve a concepção kantiana da natureza humana, mostrando que essa concepção delimita
o domínio factual sobre o qual Kant interpreta os predicados religiosos fundamentais: moralmente bom e
moralmente mau.
Palavras-chave: Kant. Religião da razão. Deus. Natureza humana. Semântica.
Abstract: After formulating in schematic way the fundamental problem of religion in Kant – that of de-ciding whether man is morally good or bad – the article discusses the his concept of religion of reason,
emphasizing that Kant put forward a doctrine of religion without God, although not without the idea of
God. Next, the article develops Kant´s views on human nature, and shows that these views delimit the
factual domain of application to which are applied the fundamental predicates of religion, morally good
and morally bad.
Key words: Kant. Religion of reason. God. Human nature. Semantics.
1. A DOUTRINA DA RELIGIÃO DA RAZÃO COMO SOLUÇÃO DO PROBLEMA FUNDA-MENTAL DA RELIGIÃO
O objetivo do presente trabalho é apresentar um breve esboço dos elementos da
doutrina kantiana da religião, exposta em Religião dentro dos limites da mera razão, de
1793, e em vários outros textos da fase tardiado pensamento kantiano. Essa doutrina se
propõe, conforme se lê no final do prefácio à primeira edição da obra mencionada, a
“tornar visível
2
a relação da religião com a natureza humana, portadora de predisposi-ções em parte boas e em parte más” (Kant 1793b, B XX).
3
Kant não tem em vista a re-ligião revelada, mas a religião natural, isto é, a religião da razão. Se tomada no sentido
subjetivo, a religião da razão é “o conhecimento de todos os nossos deveres como man-damentos divinos” (p. 216). No sentido objetivo, ela é idêntica à moral, isto é, consiste
no conhecimento “de que algo é um dever, antes de eu poder reconhecê-lo como man-1
O presente trabalho é uma versão ampliada e modificada da palestra proferida II Colóquio de História da
Filosofia, Marília, 06-11/08/2006 e, antes disso, naabertura do VIII Colóquio Kant, Unicamp, Departa-mento de Filosofia, 29-31/05/2006.
2
No original: “bemerklich zu machen”.
3
Utilizo “predisposição” para traduzir “Anlage”, termo pelo qual Kant traduz o latim praedispositio
(1797b, p. 35).
Kant e-prints. Campinas, Série 2, v. 2, n.1, p. 73-91, jan.-jun. 2007.
ZELJKO LOPARIC  74
damento divino” (ibid.). Kant chama o conjunto de deveres tomado tanto no sentido
subjetivo como no objetivo de “princípio bom” e o seu oposto – esse conceito será ex-plicitado melhor a seguir – “princípio de mau”.
A tarefa de tornar visível a relação da religião com a natureza humana, será con-cebida por Kant a de representar o “princípiobom” da religião e o seu oposto, o “princí-pio mau”, “como
4
duas causas existentes por si e exercendo influência, agindo sobre o
homem” (ibid.), isto é, interpretará essa oposição lógica entre os predicados “moralmente
bom” (Bm) e o seu complemento “moralmente mau” (Mm) em termos de uma oposição ou
conflito real.
O estudo desse conflito será articulado emquatro partes do livro sobre a religião.
A primeira parte trata do problema de assentamento (Einwohnung)
5
do princípio bom,
ao lado do mau, na natureza humana, que é a condição de possibilidade de aplicar os
predicados BB
me Mmao homem. A solução desse problema é base da solução de todos os
outros, abordados nas três partes da Religiãoque se seguem: o da luta do princípio bom
com o mau pelo poder sobre o homem; o da vitória do princípio bom (em termos religi-osos: da instituição de um reino de Deus naterra); e, finalmente, o da conduta da vida
de acordo com a totalidade dos deveres (o serviço prestado a Deus pelos seres humanos
sob o comando do princípio moralmente bom).
6
Kant se apoiará na doutrina da religião da razão assim estruturada para resolver
o problema de saber se o homem é moralmente bom ou moralmente mau.
7
Essa pergun-ta está, observa Kant, na base do desacordo, de longa data, entre os moralistas, segundo
a maneira como interpretam a disjunção mencionada – os dois lados da disjunção são
exclusivos e só um deles vale; ou então, os dois disjuntivos não são exclusivos e ne-nhum deles é válido ou, dependendo das circunstâncias, tanto um como o outro pode
valer. Mas ele também pertence á religiãoda razão, pois ele é apenas uma diferente
formulação do problema de assentamento do princípio bom, ao lado do mau, na nature-za humana, que é, como acabo de dizer, o principal assunto da primeira parte da Religi-ão. Pode-se concluir, portanto, que saber se o homem é moralmente bom ou moralmente
4
No original: “gleich als”.
5
Para traduzir “Einwohnung“ de Kant poderiam ser usados também os termos “alojamento” e “implanta-ção”.
6
Uma valiosa apresentação geral do livro da Religião, menos comprometida com uma interpretação uni-tária, encontra-se em Herrero 1991.
7
Kant diz tanto moralisch gut(1797b, p. 5) como sittlich gut(p. 8). Creio que, aqui, essas duas expres-sões são sinônimas.
Kant e-prints. Campinas, Série 2, v. 2, n.1, p. 73-91, jan.-jun. 2007.
NATUREZA HUMANA COMO DOMÍNIO DE APLICAÇÃO DA RELIGIÃO DA RAZÃO  75
mau é, segundo Kant, o problema fundamental da filosofia da religião, tanto da tradi-cional (pré-crítica), como da transcendental (crítica).
A fim de facilitar a compreensão da estrutura desse problema, tal como formula-do na Religião, bem como a solução apresentada por Kant (baseada na relação, tornada
visível, entre a religião e a natureza humana), convém considerar separadamente os dois
termos dessa relação. A solução propriamente dita será tratada em um trabalho separado
(cf. Loparic 2007).
2. A RELIGIÃO DA RAZÃO
Para Kant, a religião não é a revelação contida nas Escrituras,mas uma doutrina
da razão prática, definida como “conhecimento de todos os nossos deveres como man-damentos divinos” (1793b, p. 230). Os deveres em questão certamente incluem os espe-cificamente morais. Limitar-me-ei a estes, deixando em aberto a questão de saber se os
deveres do direito e da virtude, explicitados na Metafísica dos costumes(1797), também
fazem partes dos deveres dos quais trata a doutrina da religião.
A teoria moral de Kant, tal como apresentada, em 1785, na Fundamentação da
metafísica dos costumes, faz derivar os deveres morais da lei moral: dever é “a necessi-dade de uma ação devido ao respeito pela lei” (1785, p. 14; os itálicos estão no origi-nal). Note-se que, já nesse trecho, o dever, a necessidade ou a obrigatoriedade de uma
ação, é definido como decorrente de lei moral sensificada pelo respeito que inspira nos
agentes humanos. Contudo, esse aspecto da problemática da teoria kantiana do dever
moral não será objeto de estudo mais aprofundado na Fundamentação. O interesse de
Kant está voltado para a fórmulade lei moral, descoberta e especificada como condição
necessária e suficiente da moralidade a partirdo conceito de um ser racional de modo
inteiramente a priori, mediante o uso da parte regressiva, propriamente analítica, do
método combinado de análise e síntese.
8
Não foi feito qualquer recurso às feições (Bes-chafenheiten)
9
específicas da natureza humana, objeto de estudo não da psicologia em-pírica, mas da “antropologia prática”, parte “empírica” e ainda não elaborada (estamos
em 1785) da ética ou filosofia prática, cuja parte pura é a metafísica dos costumes ou a
8
Cf. 1785, pp. 35 e 74. Esta tese é detalhada em Loparic 1999.
9
Uso o termo “feição”, derivado de fectio, facere, fazer, criar, para traduzir o alemão Beschaffenheit,
derivado de schaffen, fazer, criar, freqüentemente empregado por Kant para se referir aos atributos morais
ou pragmáticos do homem. Essa escolha facilita a discusão da relação entre feições físicas e morais. Re-servo o termo “propriedade”, derivado de “próprio”, para verter Eigenschaft, que tem semelhante origem
etimológica e que, em Kant, designa indiscriminadamente atributos teóricos e práticos.
Kant e-prints. Campinas, Série 2, v. 2, n.1, p. 73-91, jan.-jun. 2007.
ZELJKO LOPARIC  76
moral (p. VI).
10
Num próximo passo, a moral determina, em termos da lei moral a prio-rienunciada como imperativo categórico, o que é moralmente bom (BB
m ) ou moralmente
mau (Mm).
Na doutrina da religião, todos esses elementos são inseridos numa perspectiva
mais ampla: a lei moral e os deveres morais– e, por conseguinte, os predicados “mo-ralmente bom” e “moralmente mau” – são qualificados, adicionalmente, como impostos
por um legislador divino santo, pensado comoexterno ao ser humano. Kant enfatiza que
essa definição não implica qualquer juízo teórico sobre a existência de Deus (1793b, p.
230 nota), mas uma “fé prática”, que não precisa da hipótese teórica da existência de
Deus, mas “tão-somente da idéia de Deus, à qual deve chegar inevitavelmente toda ela-boração do bem moralmente séria (e, por isso, crente)” (ibid.). Por que? Porque, “o con-ceito de divindade [Gottheit] surge na verdade tão-somente da consciência das leis mo-rais e da necessidade da razão de assumir umpoder que possa assegurar, a essas leis, o
efeito inteiro, possível no mundo e compatível com o fim último moral” (p. 139).
As implicações dessa abordagem dareligião foram extraídas na Doutrina de vir-tude(1797), com a distinção entre o sentido material (deveres para com Deus) e formal
(o caráter divino da lei moral) da religião. A religião como doutrina dos deveres para
com Deus está “além de todos os limites da ética puramente filosófica” (1797b, p. 182).
À esta, isto é, à filosofia prática pertence tão-somente a religião no sentido formal, que
usa a idéia de Deus para qualificar adicionalmente a legislação da razão. Kant escreve:
O aspecto formal[das Formale] de toda religião, desde que a religião seja definida co-mo “a soma de todos os deveres como(instar) comandos divinos”, pertence à moral fi-losófica, uma vez que tal definição expressa somente a relação da razão com a idéia de
Deus que a razão produz para si mesma; e isso não transforma, adicionalmente, um de-ver religioso num dever para com (erga) Deus, como um ser que existe fora de nossa
idéia, posto que ainda abstraímos de sua existência. O fundamento sobre o qual um ser
humano deve pensar todos os seus deveres em conformidade com esse aspecto formal
da religião (a relação deles com uma vontade divina dada a priori) é apenas subjetiva-mente lógico, quer dizer, não podemos tornar a obrigação (a necessitação moral) intuiti-va para nós mesmos, sem com isso pensar na vontade de outrem, a saber, a de um Deus
(da qual a razão, ao legislar leis universais, é apenas o porta-voz). (Kant 1797b, p. 181)
Na seqüência, Kant enfatiza e esclarece o caráter “subjetivamente lógico” da sua
concepção da religião:
10
Já na primeira Crítica, Kant fala em antropologia como disciplina distinta da psicologia empírica (ciên-cia natural empírica do homem) e que precisa ainda ser elaborada a fim de permitir a elaboração de uma
“filosofia aplicada” cujos princípios são contidos na filosofia pura (KrV, B 876-7).
Kant e-prints. Campinas, Série 2, v. 2, n.1, p. 73-91, jan.-jun. 2007.
NATUREZA HUMANA COMO DOMÍNIO DE APLICAÇÃO DA RELIGIÃO DA RAZÃO  77
Mas esse dever relativamente a Deus(expressando-nos propriamente, relativamente à
idéia que nós mesmos fazemos de um tal ser) é um dever de um ser humano para consi-go mesmo, isto é, não é objetivo, uma obrigação de prestar certos serviços para outro,
mas apenas subjetivo, em prol do fortalecimento [Stärkung] do móbil moral na nossa
própria razão legisladora” (ibid.).
Ora, o fortalecimento do móbil moral é sinônimo de aumento da virtude, que é
definida precisamente como “força [Stärke] moral das máximas” (1797b, p. 46), essa
robustez (robur) podendo ser aumentada por exercíciosde vários tipos (p. 33). Nesse
contexto, a idéia de Deus não é usada para fazer referência a algo, mas, como diz Kant
no parágrafo 18 da Doutrina da virtude, para pôr em evidência um momento do sentido
da lei moral, a saber, o seu caráter incondicional, absoluto. Ao aplicarmos a idéia de
Deus à lei moral, não afirmamos nem negamos a existência de um objeto, mas tão-somente qualificamos adicionalmente a natureza da lei moral com vistas a modificar o
modo de agir dos seres humanos e fazer com que progridam moralmente. Nessa função,
a idéia de Deus torna-se, como diz Kant no mesmo livro, um construto humano “da
maior fertilidade ética” (1797b, p. 110).
11
A mesma tese é retomada num trecho do Conflito das faculdades, no qual se lê
que a religião difere da moral apenas formalmente, isto é, por conceber a legislação da
razão de maneira a “dar à moral, pela idéia deDeus gerada a partir da própria moral, a
influência sobre a vontade humana para fins do cumprimento de todos os seus deveres”
(1798b, p. 45). A verdadeira finalidade da religião não é doutrinal – fazer afirmações
sobre o que é e o que não é – mas a de “formar seres humanos moralmente melhores”
(p.109). De acordo com isso, os “artigos de fé”, entenda-se “de fé da razão”, não enun-ciam “o que deve ser acreditado (visto que a fé não permite nenhum imperativo), mas
aquilo que é possível assumir, em conformidade com os fins [morais], sem poder ser
demonstrado, e que, portanto, só pode ser acreditado” (p. 57). Uma fé que “nem produz
um homem melhor nem o demonstra, não faz parte da religião” (ibid.).
3. ALGUMAS CONSEQÜÊNCIAS DA CONCEPÇÃO KANTIANA DA RELIGIÃO
Antes de prosseguir, gostaria de chamar atenção para as conseqüências inespera-das dessa reformulação da doutrina filosófica da religião, inesperadas se olharmos para
a religião na perspectiva tradicional dogmática e não na crítica, lógico-semântico-11
A virtude, força das máximas morais no homem, difere essencialmente da graça, a assistência sobre-natural que ajuda a remediar as fragilidades da natureza humana. A garça é um parergon, um negócio
lateral, que, embora toque a religião, não pertence e ela, ou seja, a obtenção dos efeitos da graça não pode
ser recebida nas máximas da razão e, por isso, a graça não é objeto de estudo da filosofia prática (p. 64).
Kant e-prints. Campinas, Série 2, v. 2, n.1, p. 73-91, jan.-jun. 2007.
ZELJKO LOPARIC  78
pragmática, adotada por Kant. Pois, segue-se que a pergunta: Deus existe? nãofaz mais
parte dos problemas centrais da filosofia da religião. Trata-se de uma doutrina de religi-ão sem Deus, mas não sem a idéia de Deus. Em particular, o problema fundamental da
religião será formulado e resolvido sem Deus, embora não sem a idéia de Deus (Gott)
ou, como Kant também diz, da divindade (Gottheit). O uso do conceito de divindade
12
parece dar a entender que Kant, ao afastar Deus, o absoluto externo, da formulação e da
solução do problema fundamental da religião, está tentando tematizar o absoluto como
traço da dimensão interna supra-sensívelda natureza humana, por onde o criticismo
kantiano estaria filiado, mais do que deixa transparecer, a uma certa teologia e mesmo
mística protestante.
13
É preciso notar, que, aqui, a expressão “dimensão interna supra-sensível da natureza humana” designa a feição do homem de ser agente livre, isto é, de
poder agir de acordo com as leis da liberdade propriedades. Refiro-me, portanto, à hu-manidade (Menscheit) do homem, a sua “personalidade independente das determinações
físicos”, não ao homem (Mensch), enquanto portador de determinações físicas (cf.
1797a, p. 48n).
Além disso, na Religião, Kant distingue três idéias de Deus: legislador santo,
governante bondoso do mundo e juiz justo dos homens.
14
Os três conceitos de Deus são
claramente distinguidos também em outros textos, por exemplo, em Kant 1791. A histó-ria de Jó, tratada por Kant nesse escrito, ilustra a obediência incondicional deste homem
ao Deus legislador santo e a sua perplexidade quanto ao que fazem o Deus governante
do mundo e o juiz dos homens.
Na Religião, os “três Deuses” são reduzidos a três “pro-priedades morais divinas” (p. 293), a serem usadas para guiar o agir moral, e não para
pensar um ente que as reúna. Essa é a transposição kantiana do conceito de santíssima
Trindade para o domínio da práxis humana (cf. p. 201).
Sendo assim, a pergunta: Deus existe? precisa, por sua vez, ser dividida em três:
existe um legislador divino e santo?, existe um governante do mundo divino e bondo-so?, e existe um juiz dos homens divino e justo? A primeira dessas três perguntas é,
como vimos, simplesmente descartada na Religião. Não é necessário supor a existência
de um Deus legislador santo para poder pensar a lei moral comomandamento divino,
isto é, à luz da idéia de Deus construídapela razão humana como uma ficção prática
produzida com a única finalidade de fortalecer os motivos morais. A terceira foi abor-12
Cf., por exemplo, Kant 1793b, pp. 139, 200, 242 e 267.
13
Creio que esse tema pode ser relacionado com o do “valorinterno” inestimável do bom caráter, do qual
Kant fala na Antropologia(1798a, p. 267).
14
Kant liga essa divisão de Deus em três à do poder de Estado em três poderes (1793b, p. 200).
Kant e-prints. Campinas, Série 2, v. 2, n.1, p. 73-91, jan.-jun. 2007.
NATUREZA HUMANA COMO DOMÍNIO DE APLICAÇÃO DA RELIGIÃO DA RAZÃO  79
dada por Kant apenas ocasionalmente. A segunda mereceu a sua maior atenção. Numa
nota do prefácio à Religião, Kant escreve:
A proposição: Deus existe e, portanto, existe um bem supremo no mundo, se é que ela
(enquanto proposição de fé) deve surgir da moral, é uma proposição sintética a priori,
que, embora seja tomada apenas no sentido prático, vai além do conceito de dever que é
contido na moral [...], e não pode, portanto, ser derivada analiticamente dessa doutrina.
Mas, como é possível tal proposição a priori? (1793b, p. X)
É preciso notar que essa pergunta, nunca antes explicitada por Kant, diz respeito
ao postulado, formulado na segunda Crítica,da existência de um Deus bondoso, gover-nante do mundo. Nessa obra, os três postulados da razão prática são apresentados como
hipótesesque afirmam a existência de certos objetos ou feições não-sensíveis do ho-mem: a feição da liberdade da vontade humana, a existência do objeto Deus, no sentido
de governante bondoso do mundo, e a feição da imortalidade da alma humana. A justifi-cativa racional para a introdução dos postulados é garantir a exeqüibilidade das ações
que visam a realização do sumo bem (moralidade acompanhada de felicidade). Essa
mesma justificativa para a suposição do Deus governante bondoso é oferecida na Reli-gião(p. VII). A nota citada faz ver que, por tratar-se de um juízo sintético a priori, o
programa crítico exige que seja respondida a pergunta pela possibilidade da proposição
que enuncia essa suposição.
Essa pergunta não é respondida por Kant nem na Religião, nem, que eu saiba, em lugar
nenhum. Esse fato permite entender, parece-me, a transformação posterior dos postula-dos da existência de Deus e da imortalidade da alma em regras práticas do como se, isto
é, em regras para, por assim dizer, modular conceitualmente o agir humano livre.
15
A-penas o postulado de liberdade preserva o statusde um enunciado de um saber. Com
efeito, saber que o postulado de liberdade é válido significa saber que devemos seguir a
lei moral (sentimento de respeito); que, se devemos, então podemos; e que, portanto,
somos livres. Esse postulado não pode, por conseguinte, ser formulado na forma de re-gras do como se. Os outros dois podem. Kantforneceu várias versões dessas regras. As
idéias de Deus e de imortalidade, diz Kant em “Verkündigung des nahen Abschlusses
eines Traktats zum ewigen Frieden in der Philosophie”, recebem uma realidade objeti-va, embora apenas moral-prática, no contexto da seguinte regra do como se: “comporte-secomo se fossem dados os objetos (Deus e imortalidade) dessas idéias, os quais, por-15
O livro de Hans Vaihinger Die Philosophie des Als Ob, de 1911, continua sendo um fonte preciosa para
o estudo desse tópico em Kant. Em Loparic 2005a, encontram-se desenvolvimentos sobre o mesmo tema
baseados em resultados mais recentes da lógica das regras cognitivas.
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ZELJKO LOPARIC  80
tanto, podem ser postulados no sentido prático” (1796b, p. 492). Em Fortschritte, se-guindo o mesmo modo de argumentação, Kant reduz o credo da religião da razão (da
razão pura prática), a três artigos:
1)  “acredito em um Deus único, como origem de todo bem no mundo e como
seu fim último”;
2)  “acredito na possibilidade de concordar com este fim último, o supremo bem
no mundo, à medida que este depende do homem”;
3)  “acredito na vida futura eterna, como condição de uma constante aproxima-ção do mundo ao maior bem possível nele” (1804b, p. 116).
16
Entende-se, observa Kant, que essas proposições não trazem nenhum ensina-mento objetivo “relativo à realidade de seus objetos”, mas possuem “apenas um ensi-namento subjetivo, e praticamente válido, e nesse sentido suficiente, de que temos de
agir como sesoubéssemos que esses objetos são efetivos” (ibid.; os grifos são meus). Na
Lógica Jäsche, parágrafo 3, Kant volta ao assunto, propondo a seguinte formulação para
o postulado da existência de Deus: “Aja como se Deus existisse” (Handle so, als ob ein
Gott sei).
A modificação da sintaxe dos dois postuladospráticos discutidos é resumida por
Kant na seguinte definição: “O postuladoé um imperativo prático, dado a priori, cuja
possibilidade não pode, de nenhuma maneira ser explicada (nem provada). Não são,
portanto, postuladas coisas ou, em geral, a existênciade um objeto qualquer, mas tão
somente uma máxima (regra) da ação de umsujeito” (1794b, p. 498). Vaihinger, aficio-nado do ficcionalismo kantiano, cita Kant que diz: “A proposição: ´Deus existe´ não
significa fé na existência de uma substância [...], mas é apenas um axioma da razão prá-tica pelo qual ela se impõe a si mesma como princípio das ações”; e ainda: “o seu con-ceito [de Deus] é tão-somente uma idéia em prol de certos princípios” (1927, pp. 727 e
728).
Resta a pergunta: como aplicar os dois postulados da razão prática que foram
transformados em regras do como se? A resposta é: modificando a execução das máxi-mas de acordo com essas regras. Por exemplo, em Das Ende aller Dinge, de 1794, Kant
recomenda o uso da idéia da imortalidade – isto é, da infinitude do tempo das mudanças
morais – no contexto da seguinte regra do como se:
16
Note-se que a liberdade não faz parte desse credo. Ela, como disse acima, objeto de saber, não de fé.
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NATUREZA HUMANA COMO DOMÍNIO DE APLICAÇÃO DA RELIGIÃO DA RAZÃO  81
A regra para o uso prático da razão de acordo com essa idéia [de uma modificação da
nossa vida que se estende ao infinito] não quer dizer mais do que: nós devemos tomar as
nossas máximas como se– em todas as modificações de bom para melhor que vão ao in-finito – o nosso estado moral, segundo a disposição moral (o homo noumenon, cuja mu-dança “ocorre no céu”), não estivesse submetido a nenhuma mudança no tempo. (Kant
1794, p. 511)
Parafraseando Kant, a regra para o uso daidéia da nossa imortalidade diz, por-tanto, o seguinte:
1) as máximas das nossas ações devem ser avaliadas à luz da idéia da nossa i-mortalidade,
2) essa avaliação consiste em considerar a)que a nossa atitude moral, isto é, a nos-sa disposição de progredir moralmente, não muda com o passar do tempo e b) que, por-tanto, as modificações do mundo de bem para o melhor mediante nossas ações não vão
parar no tempo, isto é, enquanto estivermos vivos. Como se vê, a regra não diz nada sobre
nós num mundo sobre-natural ou outro mundo qualquer, mas sobre a maneira como de-vemos “tomar”, isto é, entender as máximas do nosso agir efetivo nós neste mundo.
A transformação dos postulados da existência de Deus e da imortalidade da alma
em regras práticas do como se tem uma conseqüência importante: o recuo, na obra de
Kant tardio, da problemática da realizabilidade do sumo bem moral. Na Doutrina do
direito, o sumo bem será dividido em duas partes: a nossa própria perfeição e a felicida-de dos outros, cada uma referida como fim deum dever de virtude diferente. A felicida-de própria não é uma dever de virtude, visto que, conforme Kant eclarece na Doutrina
da virtude, ela é algo imposto ao homem por um impulso natural (Antrieb), não sendo,
como tal, objeto necessário de uma escolha racional (1797b, p. 13).
17
Já o dever de bus-car a perfeição própria é racionalmente impostoe inclui a cultura de todas as predispo-sições que determinam a natureza humana. Essacultura, ligada a vários tipos de práti-cas, visa o fortalecimento da forças das máximas da razão que governam a realização
dessas predisposições, isto é, da virtude (pp. 14-15 e 110-111). Quanto ao dever de fa-vorecer a felicidade dos outros, ele implica tomar como seu os fins deles moralmente
permitidos (p. 17). Em nenhum dos casos, as práticas culturais exigem, a fim de serem
realizáveis, a idéia de Deus em qualquer umdos três sentidos distinguidos anteriormen-te. Desta forma, Kant dá passos decisivos na direção de uma doutrina da virtude não
apenas sem Deus, mas até mesmo sem a idéia de Deus, desenvolvimento que foi previs-to na afirmação de Kant da Religião, de que a doutrina da virtude se mantém por si,
17
Decerto, a felicidade própria pode ser assumida livre e racionalmente como fim. Esse tema, bastante
espinhoso, foi tratado, por exemplo, em Johnson 2004.
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“mesmo sem o conceito de Deus” (1793b, p. 267). Essa posição é antecipada também
no seguinte princípio: “Não é essencial e,portanto, não necessário, que o homem saiba
o que Deus faz ou tem feito para a sua felicidade”, pois trata-se de saber “o que ele tem
de fazera fim de se tornar digno dessa assistência” (p. 58).
Esse conjunto de teses, ainda pouco estudado na literatura secundária, revela
com particular clareza que a filosofia prática passou por uma evolução significativa.
Outras teses do Kant tardio abalizam o mesmo caminho. Na Doutrina do direito, o pro-gresso do gênero humano é tratado não comorealização do sumo bem moral, mas da
paz perpétua, o sumo bem político, problema formulado e tratado sem o uso da suposi-ção da existência de Deus ou mesmo da idéia de Deus. No Conflito de faculdades, a
história do gênero humano tende a realizara ordem republicana no mundo social, essen-cialmente “secular”, da qual se podeesperar vários bons resultados (Erträge) para a
vida social, não a realização do sumo bem moral da segunda Crítica.
4. A NATUREZA HUMANA
A que ou a quem se aplicama lei moral, especificada e fundada a priori, e os
predicados BB
m e Mm, definidos a priori pela lei moral? Na Fundamentação, esses predi-cados são remetidos à vontade, tomada como objeto do mundo do pensamento não sen-sificado (versinnlicht), isto é, como coisa em si: “Nada pode ser pensado em geral no
mundo, nem tampouco em geral fora dele, que possa sem restrições ser tomado como
bom a não ser a boa vontade” (1785, p. 1). A vontade em geral é a faculdade ou a ca-pacidade de um ser racional, dentro ou fora do mundo sensível, de agir causalmente se-gundo a representação de leis, sejam elas empíricas ou a priori(1785, p. 36). Por conse-guinte, os predicados “moralmente bom” e “moralmente mau” são também remetidos à
“natureza racional” em geral, incluindo tanto a natureza humana, imperfeitamente racio-nal, como qualquer outra, por exemplo, a deDeus ou dos anjos (ibid., p. 32 nota). A von-tade é boa, se, ao agir, obedecer incondicionalmente à lei moral. Docontrário, ela é má.
Essa oposição é meramente lógica, gerada por um operação discursiva, não real, que de-corresse de uma resistência que, por ser dadana experiência, possa ser dita efetiva.
18
19
18
Para comentários sobre o conceito de boa vontade, cf. Ameriks 2000, Schönecker e Wood (2002) e
Wood 2006.
19
Um exemplo fictício da vontade má é a de Lúcifer. Ele, como todo diabo, é pensado agir por pura má
vontade, isto é, elevando ao nível de motivo a oposição contra a lei, motivação que seria contraditório
atribuir a Deus e aos anjos como tais, que, em virtude da natureza humana propriamente dita, tampouco é
aplicável aos homens (1793, p. 33).
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NATUREZA HUMANA COMO DOMÍNIO DE APLICAÇÃO DA RELIGIÃO DA RAZÃO  83
Contudo, os princípios moraisda razão prática, tal como os da nossa faculdade
cognitiva, permanecem vazios, sem realidade objetiva prática e expostos à objeção de
serem ficções sem sentido prático ou mesmo como quimeras, se não forem aplicados a
um domínio factual.
20
Isso é um resultado geral da semântica transcendental de Kant.
Ora, nós só temos acesso experiencial à natureza humana. Portanto, não obstante a for-mulação e a resolução do problema de fundamentação da moral sejam da alçada exclu-siva da razão pura prática e inteiramente independentes das considerações acerca da
natureza humana, o problema da realidade objetiva prática da moral racional só pode ser
formulado e resolvido – decididopor sim ou não – com respeitoà natureza humana, isto
é, à vontade humana que, como tal, não é plenamente conforme à razão (p. 39). Em su-ma, a aplicação da moral exige um estudo da natureza humana, a ser feita por uma futu-ra antropologia, disciplina ainda não constituída em 1785.
Na Religião, Kant explicita esse ponto em termos mais bem antropológicos do
que semânticos, dizendo que “existe uma limitação da razão humana, que nem sequer
há de ser separada dela: a de que nós não podemos pensar nenhum valor de alguma re-levância nas ações de uma pessoa sem, ao mesmo tempo, representar essa pessoa ou sua
expressão de uma maneira humana” (1793b, p.76). Ou seja, há uma “necessidade natu-ral em todos os homens de sempre exigir, para os mais altos conceitos e fundamentos da
razão algo que possa ser sustentado de modo sensível[Sinnlichhaltbares], uma confir-mação experiencial qualquer ou algo semelhante” (p. 149). Todo objeto supra-sensível,
mesmo o mais justificado racionalmente, “precisa, contudo, no homem, ser representado
por algo visível (sensível) e, o que é mais importante ainda, acompanhado por esse algo
em prol do prático, de modo que o que é de fato intelectual é feito como que intuitivo
(segundo uma certa analogia)” (p. 281). Esse procedimento “não é dispensável” (ibid.).
Note-se que, no quadro do programa kantiano da crítica da razão pura, o pro-blema da aplicação da moral racional à natureza humana tem necessariamente dois ní-veis: a fim de poder afirmarcom sentido – isto é, de modo pelo menos em princípio
decidível –, que a lei moral está efetivamente em vigor, e de forma incondicional, com
respeito à vontade humana, é preciso decidir, antes disso, se essa lei pode ou nãoser
aplicada (angewandt)à vontade humana, ou ainda, se a vontade humana, reconhecida
20
Schwemmer, por exemplo, objeta a Kant o fato de a sua ética ser “sem sentido” para o agir factual
(1989, p. 153). Pieper, ao responder a Schwemmer, não parece ter dado a devida atenção ao problema,
particularmente delicado, da realidade objetiva da idéia kantiana do dever (Pieper 2000, pp. 279-280).
Creio que o mesmo vale para a abordagem de Dörflinger (2004). A minha posição, enunciada no texto,
foi objeto de discussão detalhada em Loparic 1999. Vossenkuhl (1992) parece ir na mesma direção.
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como imperfeita pela antropologia, pode realizar (executar)ações de acordo com o co-mando incondicional da lei moral. Dito de outra maneira, toda qualificação moral de um
ser humano como bom ou mau pressupõe a demonstração que a vontade pecadora como
a nossa pode ser obrigada lei moral (lei que exige a santidade). Tomando como guia
uma exigência estabelecida na primeira Crítica, Kant dirá, já na Fundamentação, que,
previamente à decisão sobre a efetividade da lei moral, é preciso achar a resposta para a
pergunta: como é possível – isto é, aplicável a uma vontade factual – o juízo sintético-prático a priorique enuncia o imperativo categórico?
21
Com esse argumento, Kant inicia o movimento de ampliação do seu conceito i-nicial de filosofia transcendental. Na primeira Crítica, essa doutrina é restrita à pergun-ta: como são possíveis os juízos sintéticos a prioriteóricos? Na Fundamentação, Kant
dá o primeiro passo no sentido de estender a filosofia transcendental de modo a abran-ger a pergunta de saber como são possíveis os juízos sintéticos a prioriem geral, a co-meçar pelo imperativo categórico. Este juízo é sintético-prático, explica Kant, pois co-necta, sem pressupor qualquer inclinação como condição, a vontade com um certo modo
de agir (seguir as máximas universalizáveis), algo que não está contido analiticamente
no conceito de vontade. Ao mesmo tempo, este juízo é a priori, visto que enuncia uma
conexão necessária, objetiva, “determinada pelamera idéia da razão que tiria total força
coercitiva sobre todas as motivações subjetivas” (1785, p. 50). Logo, cabe perguntar
pelas condições de possibilidade deste juízo, isto é, pela sua “realidade objetiva”. Visto
que se trata de um juízo prático, a sua realidade terá de ser também prática. Não se per-gunta se o juízo pode ser verdadeiro ou falso no domínio de dados intuitivos (congiti-vos) possíveis, mas se o comando por ele enunciado pode ser realizado, executado, por
um agente efetivo. Como essa pergunta só setorna determinada e solúvel se referida ao
ser humano, a realidade objetiva prática é sinônimo de possibilidade de realização ou de
exeqüibilidade (Ausführbarkeit) pelo ser humano.
22
A resposta a essa pergunta, que anuncia a inclusão da filosofia prática de Kant
na sua filosofia transcendental, só será encontrada na segunda Crítica: a lei moral é pos-sível – ela tem uma realidade prática – à medida em que afetaa nossa vontade, isto é,
causaem nós o sentimento de respeito e, desse modo, produz um feito: o “fato da ra-zão”. Em outras palavras, a lei moral é possível, tem realidade objetiva prática, por ser
21
Cf. Kant 1785, p. 50 et passim.
22
Sobre essa sinonímia entre a praktische Realitäte a Ausführbarkeit, cf., por exemplo, Kant 1793a, p.
436; tr. p. 297. Para os comentários, cf. Loparic 2000 e 2004. Nos seus estudos sobre a afcticidade da
liberdade em Kant, Heidegger.
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efetiva, tese que inverte o procedimento da primeira Crítica, onde a possibilidade dos
juízos sintéticos a priorié demonstrada antes da sua efetividade.
23
Na passagem da segunda Críticapara a Religião, observa-se uma outra mudança
importante: os predicados a priori Bm e Mm, elementos básicos da doutrina da religião da
razão, não são mais relacionados à vontade, mas ao homem, mais precisamente à natu-reza humana, à medida em que esta é portadora de predisposições em parte boas e em
parte más, isto é, de elementos ordenados que favorecem e de outros que impedem a
realização dos deveres morais. Aqui, a expressão “natureza humana” tem o sentido an-tropológico-moral, pois designa “apenas o fundamento subjetivo do uso pelo homem da
sua liberdade em geral (sob leis morais objetivas)” (p. 6). Trata-se de uma faculdade ou
capacidade moral (moralisches Vermögen) do homem que torna possível que ele faça
“algo de bom para si segundo as leis da liberdade”. O termo “natureza” é usado, por-tanto, num sentido radicalmente diferente do considerado pela filosofia teórica de Kant.
De mesma forma, o termo “humano” deve ser relacionado à humanidadedo homem, no
sentido de disposição para personalidade moral, para atuar como um agente moral,
não no sentido de disposição para viver como um animal (ser da natureza física, objeto
da filosofia teórica e da ciência natural) dotado da feição adicional de ser racional.
Portanto, o estudo da natureza humana não visa descobrir o que a natureza quer do ho-mem ou com o homem, mas aquilo que ele mesmo, como ser moral, quer fazer de si
mesmo.Nesse novo contexto semântico, exclusivamente prático, no qual os conceitos
de natureza e de práxis humana, são redefinidos, recebendo sentidos inteiramente novos,
a pergunta pela possibilidade da lei moral pode ser desdobrada em duas: como são pos-síveis os juízos sintéticos a priori“o homem é moralmente bom” e “o homem é moral-mente mau”?
24
25
26
27
23
Essa tese foi proposta inicialmente em Loparic 1999.A teoria dos efeitos sensíveis da razão, isto é, da
facticidade da razão foi desenvolvida por Kant em textos posteriores à segunda Crítica, em particular, na
Religiãoe na Metafísica dos costumes(1797). Interpretações distintas do conceito de fato da razão foram
apresentadas por Höffe (1979, cap. 3), Almeida (1999) e Beck (1995), entre outros. Um comentário escla-recedor desse conceito, não comprometido com a discussão mencionada, encontra-se em Sala 2004.
24
No Conflito das faculdades, Kant define a natureza humana no sentido pragmático mais geral, como
faculdade do ser humano “de realizar determinados fins pelas suas próprias forças” (1798b, p. 59).
25
1793b, p. 14; cf. 1797b, pp. 22 e 48.
26
Esse sentido de humanidade é explicitado, por exemplo, em 1793b, p. 13.
27
Kant distingue explicitamente “o que a naturaem nós quer” e “o que o homem quer” (1793b, p. 287).
Nesse ponto, vários textos posteriores, por exemplo, À pa perpétua(1795), nos quais Kant ainda estuda o
que a natureza quer ocupam uma posição mais conservadora que o texto da Religão. A hesitação de Kant
entre os dois motores da história, a vontade da natureza e a vontade humana, cessará definitivamente
depois da publicação da Metafísica dos costumes, em 1797, a responsabilidade total pelo progresso para
melhor recaindo sobre a faculdade apetitiva dos seres humanos, considerados tanto individual como cole-tivamente.
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Qualquer resposta terá, portanto, de se valer de elementos que pertencem, de di-reito, à antropologia. Essa disciplina, cuja elaboração foi exigida por Kant na primeira
Crítica, não foi desenvolvida na Fundamentação, embora precise ser notado que o res-peito pela lei moral, com o qual Kant trabalhanessa obra, é um sentimento, e, portanto,
um “fato” sensível, experienciado, que, comotal, pode e deve ser objeto de pesquisa
antropológica. É precisamente na Religiãoque Kant lança os fundamentos de uma an-tropologia das predisposições, e do desenvolvimento delas, a qual será usada no estudo
da aplicação da sua doutrina da religião e, deum modo geral, da sua filosofia prática.
Esse trabalho prosseguirá em vários outros textos tardios de Kant, em particular, na Me-tafísica dos costumes, com a introdução do conceito de antropologia moral, no Conflito
das faculdadese na Antropologia, onde a antropologia moral será incluída no conceito
mais geral de antropologia pragmática, ciência empírica elaborada do ponto de vista
(Hinsicht) ou com intuito (Absicht) pragmático. Trata-se de uma disciplina que não se
ocupa daquilo “que a naturezafaz do homem”, entenda-se natureza no sentido da filo-sofia teórica, mas daquilo que “ele, como ser que age livremente, fazde si mesmo ou
podee devefazer” (1798a, p. IV; os últimos três itálicos são meus). O mesmo tema é
retomado no seguinte trecho: “Não importa [na antropologia pragmática] o que a natu-reza faz do homem, mas o que este faz de si mesmo; pois o primeiro pertence ao tempe-ramento (quando o sujeito é em grande parte passivo) e tão-somente o último deixa re-conhecer que ele tem um “caráter”, “uma propriedade da vontade, segundo a qual o su-jeito se vincula si mesmo a determinados princípios práticos que ele se prescreveu como
imutáveis pela sua própria razão” (ibid., pp. 267-8). Ou seja, um modo de pensar (De-kungsart) que tem a força sobre nós.
28
O objeto de antropologia pragmática é, portanto,
o homem ou a natureza humana compreendida como o conjunto de condições subjetivas
– faculdades, predisposições, propensões, tendências, caráteretc. –, favoráveis ou des-favoráveis para a execução de regras tanto teóricas como práticas, e, dentrodesse último
grupo, de regras técnico-práticase moral-práticas. Não se estuda o que a natureza quer
do homem e com o homem, mas aquilo que ele quer. Dessa forma, a antropologia moral
passa a fazer parte da antropologia pragmática concebida como ciência generalizada do
que o homem pode ou deve fazer ou deixar de fazer de si mesmo.
29
28
Na Religião, Kant chamou tal modo de pensar virtus noumenon, em oposição à virtus phaenomenon,
definida comumente como longo hábito na observância das leis (1793b, pp. 49-50).
29
Vários pontos dessa evolução do pensamento kantiano são tratados de modo mais detalhado em Lopa-ric 2007. Eles não são devidamente apreciados por comentadores que não prestam atenção suficiente ao
caráter sistemáticodo pensamento kantiano (cf., por exemplo, Brandt 1999). Considerando a matéria
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Voltando à Religião, Kant sustenta a tese antropológica de que a natureza huma-na é determinada por três classes de predisposições: para a animalidade (para o amor de
si físico e meramente mecânico), para a humanidade (para o amor de si físico, mas
comparativo, o que exige a razão) e para a personalidade (para a responsabilidade por
suas ações).
30
As predisposições que pertencem necessariamente à possibilidade de um
ente são originárias; aquelas sem as quais esse ente seria possível em si são acidentais.
Todas são pensadas como universais: valem para o homem em geral, e, deste modo,
expressam o caráter da espécie (1793b, pp. 8 e 17).
31
Na Religião, contudo, Kant trata
apenas de predisposições que se referem “imediatamente à faculdade apetitiva e ao uso
do arbítrio” (p. 18).
32
A predisposição para a personalidade, que nos interessa aqui de modo mais dire-to, é “a receptividade [Empfänglichkeit] para o respeito pela lei moral, como um móbil
de arbítrio, suficiente por si mesmo” (1793b, p. 16). Toda predisposição é essencial-mente modificável. No caso da predisposição para o bem moral, a modificabilidade in-clui a perfectibilidade, o progresso para o moralmente melhor. A predisposição para o
bem é, portanto, também um germe do bem (Keim des Guten) que pode e deve ser de-senvolvido, sob a influência das idéias práticas, em uma disposição (Gesinnung) moral
boa. Abre-se assim o campo para uma história moral, individual e coletiva, realizada de
acordo com essa disposição e que tem uma dimensão pura, supra-sensível, relativa à
própria disposição moral, e uma dimensão factual (sensível), relativa aos atos morais
como tais.
33
Finalmente, cabe considerar em que consiste a vida humana vivida de a-muitas vezes episódica e mundana das considerações de Kant na Antropologia(conteúdo muito bem
explicável pela inspiração inicial – a psicologia de Baumgarten – e a longa gestação dessa obra, iniciada
ainda no período pré-crítico), eles concluem, de modo errôneo, que a disciplina apresentada nessa obra,
em 1798, difere também na sua forma – tanto nos objetivos como na metodologia – da antropologia moral
da Metafísica dos costumes, publicada apenas um ano antes, em 1797. Sobre esse assunto, cf., em particu-lar, Kant 1798a, pp. 329-321, onde é apresentada “a suma da antropologia pragmática no que diz respeito
à determinação do homem e à característica da sua formação”.
30
Uma diferente classificação das disposições, em técnica, pragmática e moral, com comentários corres-pondentes, encontra-se na Antropologia, pp. 316-321. Talvez não seja sem interesse notar que, na primei-ra Critica, Kant fala da “metafísica como predisposição natural”, isto é, como necessidade (Bedurfnis) da
qual surgem os problemas darazão pura (KrV, B 22).
31
O termo “espécie” é usado aqui tanto no sentido coletivo, para designar o todo da humanidade, como
no distributivo, para fazer referência aos indivíduos humanos mediante a unidade meramente lógica de
um conceito (cf. 1798ª, p. 330).
32
Essa restrição será eliminada na Antropologia, onde Kant tratará da questão geral: o que é o homem?
Além da faculdade apetitiva, ele abordará todos os outros elementos constitutivos da natureza humana, a
faculdade cognitiva e o sentimento de prazer e desprazer.
33
O mesmo se observa na teoria kantiana da história de 1798 (cf.Kant 1798b, parte 2).
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cordo com a predisposição para o bem plenamente desenvolvida.(entwickelt) em uma
disposição efetiva (p. 35).
34
Além de predisposições, a natureza humana também comporta inclinações (dese-jos habituais), que, como tais, são acidentais.O fundamento subjetivo de uma inclinação
chama-se propensão (Hang). Mesmo sem ser uma predisposição originária da natureza
humana, a propensão pode ser dita congênita (angeboren), não como elemento constitu-tivo da natureza humana, mas no sentido de não poder ser extinta (p. 23). Quando boa,
diz-se que é adquirida (erworben); quando má, qualifica-se como contraída (zugezo-gen).
35
Na antropologia da Religião, contudo, Kant tratará sobretudo da propensão para
o mal, a qual vige como “fundamento subjetivo da possibilidade do desvio das máximas
da lei moral” (p. 19). Assim como as predisposições para o bem, essa propensão, cha-mada “mal radical”, expressa o caráter da espécie e, por isso, pode ser pressuposta como
subjetivamente necessária em todo indivíduo humano.
Como é adquirida uma disposição ou uma propensão boa? Por um ato que pre-cede e torna possíveis todos osatos moralmente bons. Como é contraída uma propensão
má? Por um ato que precede e possibilita todos os atos moralmente maus. Nesse contex-to, o conceito de ato é tomado em dois diferentes sentidos, ambos compatíveis com o
conceito de liberdade: “Mas a expressão de um ato [Tat] em geral pode valer tanto para
o uso da liberdade pelo qual a máxima suprema (conforme ou não com a lei) é recebida
no arbítrio, como também para aquele uso pelo qual são executadas as próprias ações
[Handlungen] (segundo a sua matéria, isto é, concernindo os objetos do arbítrio)” (p.
23). Assim, por exemplo, “a propensão parao mal é um ato no primeiro sentido (pecca-tum originarium), sendo, ao mesmo tempo, o fundamento formal de todo ato contrário à
lei no segundo sentido” (ibid.). O ato no primeiro sentido é um “ato inteligível”, não
sensível, “podendo ser conhecido pela razão sem toda e qualquer condição temporal”
(ibid.; cf. p. 36 nota).
Procedendo dessa forma, isto é, analisandoo que é implícito no conceito do ato
sensívelmoralmente bom ou mau, Kant introduz na sua antropologia moral um conceito
34
A tese kantiana da determinabilidade essencial dohomem pelas idéias da razão preparou o caminho
para o surgimento das duas principais teorias filosóficas da história: a teoria hegeliana do desenvolvimen-to (Entwickelung) do Absoluto (da queda do Espírito no tempo, da “concretude” do Espírito) e a teoria
heideggeriana da acontecencialidade (Geschichtlichkeit) do ser – ambas afirmando que a história da filo-sofia é história fundamental. A mesma tese de Kant permite-nos, ainda hoje, entender, retrospectivamen-te, o poder dos mitos e das religiões sobre os homens e, prospectivamente, o primado do virtual sobre o
real, um ponto que escapou às teorias materialistas da ideologia, por exemplo, a marxista e a freudiana.
35
A capacidade e a incapacidade do arbítrio de aceitar a lei moral na sua máxima, que surgem da propen-são natural, são chamadas coração bom e mau, respectivamente (1793b, p. 19).
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NATUREZA HUMANA COMO DOMÍNIO DE APLICAÇÃO DA RELIGIÃO DA RAZÃO  89
totalmente novo: o de uma práxis a priorique estabelece as condições a priori, não teó-ricas, mas práticas, de possibilidade desse tipo de ato. Embora não relacionada ao tempo
sensível e cronológico da intuição teórica, essa historicidade pura de segundo grauim-plica um tempo prático que poderia ser chamado inteligível ou numênico.
36
Diferente-mente dos eventos naturais, os atos que constituem essa história moral pura não possu-em causas que possam ser objeto de pesquisa objetiva, a prioriou a posteriori. Em par-ticular, não é possível dizer que o nascimento é a causa a propensão para o mal (p. 8) ou
– isso seria mais impróprio ainda – que essa propensão é uma herança dos primeiros
pais (p. 37). Assim como as feições fundamentais da natureza humana, os atos morais
inteligíveis não podem ser objeto de uma história natural, a ser estudado teoricamente.
Por isso, nem da predisposição para o bem nem da propensão para o moralmente mau
pode ser determinada a origem no tempo, mas apenas na razão (p. 36). A teorização
pragmática a priorisobre o acontecer moral fica restritaàs representações da razão, não
podendo ser apresentada por conceitos aplicáveis à sensibilidade, seja teórica (intuição)
seja moral (sentimento moral). Mesmo assim, por serem feições inextinguíveis – a pri-meira por ser originária, a segunda, por ser congênita – elas devem ser representadas
“como presentes no homem simultaneamente com o nascimento” (p. 8).
37
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Hamburg, Meiner.
36
Elementos para a introdução desse conceito na interpretação da filosofia prática de Kant encontram-se
em várias obras tardias, por exemplo, em Das Ende aller Dinge, na qual Kant fala em “duratio noume-non“ (1794, p. 495). Ele esta implícito também nas considerações sobre a prestação final de contas pela
vida na terra, o juízo final, a paz perpétua etc. A fim de entender melhor as implicações profundas dessas
análises kantianas, creio que seria proveitoso recorrer aos conceitos heideggerianos de temporalidade
originária e de acontecencialidade do ser-o-aí (Geschichtlichkeit des Daseins) (Heidegger 1927, p. 394).
37
A teorização kantiana sobre a pragmática pura, aquiexplicitada, exigiria, decerto, uma elaboração adi-cional. Essa pesquisa poderá, sem dúvida, ser facilitada considerando o conceito de “práxis moral” intro-duzido por Heidegger no seu comentário sobre o fato da razão de Kant (GA 31, pp. 263 e 271). Contudo,
Heidegger trabalha, quase exclusivamente, com textos kantianos anteriores à Religiãoe não leva em con-ta a antropologia moral das obras tardias. Por isso, ele não estabelece a conexão, potencialmente muito
frutífera, entre os elementos constitutivos da natureza humana, no sentido de Kant, e a estrutura do Dasein
exposta em Ser e tempo. A sua interpretação da “facticidade darazão prática” (p. 273) permanece centra-da no conceito de vontade pura e, em virtude disso, forçosamente abstrata, mais apropriada para um dia-logo com o idealismo alemão (Schelling), do que com Kant (cf. Heidegger 1995).
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