8. LIVRE-ARBÍTRIO E RESPONSABILIDADE DE ADÃO
Portanto, Deus proveu a alma do homem com a mente, mediante a qual pudesse
distinguir o bem do mal, o justo do injusto, e, assistindo-a a luz da razão, percebesse
o que se deve seguir ou evitar. Razão por que os filósofos chamaram a esta parte
diretiva to ehgemonikon [to hçgemonikon – o dirigente]. A esta mente Deus associa a
vontade, em cuja alçada está a escolha. Nestes preclaros dotes exceleu a primeira
condição do homem, de sorte que a razão, a inteligência, a prudência, o julgamento
não só lhes bastaram para a direção da vida terrena, mas ainda por meio destes
98. Primeira edição: “Portanto, assim hajamos: subjazem à alma humana duas partes, que, indubitavelmente,
convêm ao presente propósito.”
99. Assim Platão em Fedro.
100. Ética, livro VI, capítulo 2.
196 LIVRO I
elementos, os homens pudessem transcender até Deus e à felicidade eterna. Então
proveu que se acrescentasse a escolha, que dirigisse os apetites e regulasse a todos
os movimentos orgânicos, e assim a vontade fosse inteiramente consentânea à ação
moderadora da razão. Nesta integridade, o homem usufruía de livre-arbítrio, mercê
do qual, caso quisesse, poderia alcançar a vida eterna.
Ora, está fora de propósito introduzir aqui a questão da predestinação secreta de
Deus, uma vez que não está a tratar-se do que aconteceu ou não pôde acontecer,
mas, ao contrário, de qual foi a natureza do homem. Portanto, Adão podia manterse,
se o quisesse, visto que não caiu senão de sua própria vontade. Entretanto, já que
sua perseverança era flexível, por isso veio tão facilmente a cair. Contudo, a escolha
do bem e do mal lhe era livre. Não só isso, mas ainda suma retidão havia em sua
mente e em sua vontade, e todas as partes orgânicas estavam adequadamente ajustadas
à sua obediência, até que, perdendo-se a si próprio, corrompeu todo o bem que
nele havia.
Daqui a escuridão tão ingente lançada diante dos filósofos, visto que na ruína
procuravam um edifício estruturado e na desarticulação desconexa, junturas ajustadas.
Sustentavam este princípio: que o homem não havia de ser um animal racional,
a não ser que lhe assistisse livre escolha do bem e do mal. Também lhes vinha à
mente que, de outra sorte, a não ser que o homem dispusesse a vida, segundo seu
próprio entender, a distinção entre virtudes e vícios estaria anulada.
Até aqui, sem dúvida estaria tudo bem arrazoado, se nenhuma mudança tivesse
havido no homem.Uma vez que esta mudança lhes foi ignorada, não surpreende que
misturem o céu à terra! Mas os que professam ser cristãos, e ainda buscam o livrearbítrio
no homem perdido e imerso em morte espiritual, corrigindo a doutrina da
Palavra de Deus com os ensinos dos filósofos, estes se desviam totalmente do caminho
e não estão nem no céu nem na terra, como se verá mais extensamente em outro
lugar.101
Agora importa levar em conta apenas isto: que em sua condição original o homem
foi totalmente diferente de toda sua posteridade, a qual, derivando a origem do
corrupto, dele contraiu mácula hereditária. Ora, todas as partes da alma, uma a uma,
lhe estavam conformadas à retidão, e firme se estabelecia a sanidade de sua mente,
e sua vontade era livre para escolher o bem. Se alguém objeta, dizendo que sua
vontade fora posta como que em um resvaladouro, porquanto essa sua faculdade de
escolha era fraca, para remover suficientemente toda escusa valeu-lhe aquela condi-
ção original, pois não era razoável ser Deus constringido por esta lei, que fizesse
101. Primeira edição: “Desvairam, obviamente, de sorte que não atinjam nem o céu, nem a terra, [aqueles,]
porém, que, professando-se discípulos serem de Cristo, com cindir-se entre os pareceres dos filósofos e
a celeste doutrina, ainda buscam livre-arbítrio no homem perdido e abismado na morte espiritual. Melhor,
porém, estas [cousas] em seu [devido] lugar.”
CAPÍTULO XV 197
um homem que em absoluto, ou não pudesse, ou não quisesse pecar. Uma natureza
desse gênero com toda certeza teria sido mais excelente. Entretanto, vai além de
iníquo argumentar categoricamente com Deus, como se estivesse na obrigação de
conferir isso ao homem, uma vez que estava em sua vontade dar tão pouquinho
quanto quisesse.102 No entanto, por que não quis sustentá-lo com o poder de perseverança,
isso está oculto em seu conselho secreto. A nós, realmente nos cabe saber
com sobriedade.
Com efeito, Adão recebera o poder, se quisesse; não teve, entretanto, o querer,
por meio do qual pudesse, porque a perseverança acompanharia este querer. Todavia,
não tem escusas quem recebeu tanto que, por seu próprio arbítrio, a si engendrasse
a ruína. Aliás, nenhuma necessidade fora imposta a Deus para que não lhe
outorgasse uma vontade medial e até passível de cair, para que da queda daquele
derivasse matéria para sua glória.
Institutas.