quinta-feira, 19 de fevereiro de 2015

UMA PANORMICA ENTRE A FILOSOFIA DA RELIGIO EM KANT E HEGEL: UM CONFRONTO ENTRE OS DOIS PARADIGMAS

UMA PANORMICA ENTRE A FILOSOFIA DA RELIGIO EM KANT E HEGEL: UM CONFRONTO ENTRE OS DOIS PARADIGMAS

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UMA PANORÂMICA ENTRE A FILOSOFIA DA RELIGIÃO EM KANT E HEGEL: UM CONFRONTO ENTRE OS DOIS PARADIGMAS

INTRODUÇÃO

Will Durant quando se refere à história do homem coloca-a nas duradouras contribuições dos gênios do pensamento para a soma da civilização e da cultura dos povos de toda a humanidade. E afinal o que será esta cultura procurada por tantos? _ Será educação, acúmulo de conhecimentos, embelezamento e/ou acessório da inteligência? - Cultura não é qualquer coisa que se deposita na “cabeça”, mas algo vivo, sem jactância, dinâmico. É, sobretudo “aplicação” dos conhecimentos no aprimoramento da sensibilidade, na procura em reduzir angústias da existência humana.

Penso que é também nessa direção que os grandes filósofos caminharam nas suas reflexões. Farei aqui uma exposição resumida das considerações filosóficas de Kant e de Hegel e tentarei estabelecer um paralelo entre as duas manifestações.

Considerando que todo o pensamento filosófico persegue a verdade, o objetivo não pode ser outro senão o da própria ciência, ou seja, o de oferecer uma representação da verdade dos fatos. Mas qual seria o critério para se estabelecer a verdade?

De acordo com Schlick “a verdade só pode consistir numa concordância das proposições entre si”. Esta é a tese da coerência da verdade designada na Inglaterra como “coherence theory of truth” mas é impossível logicamente tomar-se só este critério. À coerência deve ser somado um princípio segundo o qual esta coerência seria verificada. Diante disto esta tese está refutada.

Todos os filósofos procuram os fundamentos últimos da verdade e o máximo que atingiram foi “cogito ergo sum”. É difícil ter satisfação completa deste conhecimento somente através de uma ciência seja ela Filosofia ou Teologia. Elas devem atuar em complementaridade.

Por outro lado, teoricamente é possível imaginar uma situação na qual todas as afirmações de todos os outros homens a respeito do mundo não sejam confirmadas pelas minhas próprias observações. Poderia ser que todos os livros de determinado assunto que eu tivesse lido e todos os meus mestres concordassem inteiramente entre si, nunca se contradizendo e não obstante isso suas conclusões podem ser inconciliáveis com a minha maneira de percebê-las.

Quando um neófito estuda os mestres da filosofia a sua dificuldade é grande diante da complexidade das exposições conceituais e fazer um paralelo é ainda um desafio maior, mas tentarei, reconhecendo-me limitada, atender ao que é proposto neste trabalho.

CAPÍTULO I

PRINCÍPIOS DA FILOSOFIA DA RELIGIÃO EM KANT

Emmanuel Kant nasceu em Koenigsberg, no dia 22 de abril de 1724, onde viveu a sua vida sem qualquer incidente espetacular. Era o quarto irmão mais velho de uma família pobre de onze filhos. Seus pais João Jorge Kant e Ana Regina Reuter, eram austeros, honestos e religiosos. Estudou no colégio Fridericianum e depois na universidade de

Kõenigsberg onde recebeu influência pietista do filósofo Martin Knutzen e discípulo de Cristiano Wolf a quem Hegel irá chamar de o instrutor da Alemanha.

Autor de extensa obra filosófica. Em 1793, porém com sua obra sobre a religião, Kant entrou em conflito com o novo rei da Prússia, Frederico Guilherme II. O Conselho de Censura impediu a publicação de três dos quatro artigos que compunham a obra. Então ele apelou para a Faculdade de Filosofia de Iena, que autorizou a publicação. Entretanto em 1794 um rescrito do imperador o censurou e exigiu dele um compromisso formal de não mais tratar de assuntos religiosos o que Kant fez. Mas após a morte de Frederico Guilherme II, considerando-se livre do juramento, voltou a escrever em “O conflito das faculdades ” sobre as relações entre a religião e a teologia bíblica.

Emmanuel Kant foi a grande figura do desenvolvimento idealístico, perfeito tipo do filósofo abstrato. Foi ele que melhor trabalhou para libertar o espírito da matéria; que mais efetivamente argumentou contra os usos da “razão pura”. O encargo de Kant era o de reabilitar a filosofia e de assumir uma defesa da razão contra os céticos,

essa espécie de nômade, que tem horror a toda fixação sólida no chão”. 1

Kant se propõe a atacar este problema pela raiz, questionando-se sobre as próprias possibilidades da razão. Um reencontro com o movimento socrático de retorno sobre si mesmo e a preocupação de conhecer as próprias forças. Trata-se de um exame crítico da razão, de discernir o que a razão é capaz de fazer e o que lhe é impossível atingir. A preocupação crítica consiste essencialmente em não se dizer mais do que se sabe. Portanto, é preciso buscar na própria razão as regras e os limites de sua atividade, a fim de saber até que ponto pode confiar na razão.

Durante o século XIX a influência de Kant aumentou. Tão vital foi a sua obra que em seus lineamentos gerais e em suas bases até hoje permanece e é ponto de referência e estudos onde quer que se fale em filosofia ou religião. Não admite que toda a realidade, toda a “matéria”, toda a “natureza” com suas “leis” sejam jamais conhecíveis pelo homem em sua totalidade.

Kant na Crítica da Razão Pura (1781) faz uma crítica séria a todas possíveis provas da existência de Deus por intermédio da razão especulativa. Segundo Kant o homem tem uma capacidade cognoscitiva insuficiente para demonstrar a existência de Deus e o componente moral do ser do homem é que vai lhe dar um recurso moral a favor desta existência. O argumento moral a favor da existência de Deus desenvolvido nas suas três obras: Crítica da Razão Pura, Crítica da Razão Prática e da Faculdade do Juízo, tem como ponto de partida a questão do fim último do homem e por dedução a questão do sentido da lei moral. 2

Na teologia racional há uma tentativa no mais alto grau da razão de exigência da unificação e, de certa maneira, à passagem do uno ao único. A dinâmica seria das intuições aos conceitos, destes às idéias e das idéias aos ideais. O ideal é o ser individual conforme a idéia:

Assim como a idéia dá a regra, assim o ideal, em tal caso serve de protótipo para a determinação integral da cópia, e não temos outra medida para as nossas ações senão a conduta deste homem divino em nós, ao qual nos comparamos e segundo o qual nos julgamos e corrigimos, embora não possamos atingi-la jamais (B 597; TP 414).

É justamente a existência do ser supremo que a teologia racional intenta demonstrar. Podem ser reduzidas a três as provas: a prova físico-teleológica conclui da existência deste mundo para a existência de Deus; a prova cosmológica conclui de uma existência qualquer para a existência de Deus e a prova ontológica, abstração feita de toda experiência, e se chega à existência de Deus. É por esta última que Kant começa o seu estudo, pois em sua opinião, ela constitui o fundamento das duas outras.

O argumento ontológico é assim chamado porque pretende tirar a existência da essência: não posso pensar um ser supremo necessário sem pensá-lo ao mesmo tempo como existente, posto que um ser necessário seja por definição, um ser cuja não existência é impossível.

Kant faz sua reflexão teológica em cima do fato de que não se pode retirar o predicado e reter o sujeito, pois o resultado será uma contradição, se, porém suprimirmos ambos ao mesmo tempo tal contradição não se dará. Se conceber um Deus, seus predicados lhe pertencem necessariamente; mas se disser que Deus não existe, todos os seus predicados desaparecem. Assim seria necessário provar, pois, que não se pode não conceber a existência de Deus.

Dessa maneira, a teologia racional assenta totalmente no argumento ontológico, que pretende em vão demonstrar uma existência por meio de simples conceitos. Mas a atitude de Kant não é de um ateu que quer destruir toda argumentação a favor da existência de Deus ou construir um argumento sobre falsas bases facilmente destrutíveis. O intuito principal da Crítica é o de traçar os limites do conhecimento, e Deus transcende esses limites.

Isto, segundo Kant, nos permite entender que embora o espírito humano seja impelido de forma incoercível a representar-se um ser supremo ele, contudo, não pode demonstrar-lhe a existência.

Para Kant o sumo bem (das höchste Gut) é entendido como o vínculo entre a moralidade e a felicidade e seus componentes. A união entre a moralidade e a felicidade é uma exigência da própria razão; entretanto a experiência de vida mostra o quanto ela soa falso, pois “a natureza não se orienta segundo as intenções morais da vontade do homem”. 3 Assim a razão exige a realização do sumo bem, mas o homem devido sua natureza humana não consegue cumprir esta exigência.

No prólogo à primeira edição de A Religião nos Limites da Simples Razão (1973) Kant retoma o argumento a favor da existência de Deus a partir do conceito de sumo bem. Pela sua lógica se o homem é ateu é porque não está pensando corretamente.

Kant distingue bem as competências da teologia e das outras ciências e resguarda para o teólogo também a função especial de fazer incursões em outras áreas das ciências para que não caia em enganos que noutros tempos a teologia incorre. Para o eminente filósofo afirmações científicas são afirmações científicas. O material da Bíblia pode ser usado pelo teólogo nos seus estudos religiosos, mas não é para ser usado nas demais ciências.

Kant coloca bem a sua idéia de separar as ciências, a filosofia da teologia. Crendo ele que elas só terão efetivo desenvolvimento se assim se mantiverem. Assim, primeiramente, cada uma se constitui, só então podem se unir. Deste modo o teólogo bíblico pode estar ou não de acordo com o filósofo se o escutar, de outra forma se o boicotar ou ocultar as questões que ele lhe apresentar tomará frágil e duvidosa toda sua reflexão teológica em torno de determinada doutrina.

Na sua obra A Crítica da Razão Pura, Kant cita as fontes do conhecimento humano: sensibilidade e entendimento. Para ele pelas intuições tomamos conhecimento dos objetos, mas este conhecimento nada mais é que a nossa maneira de percebê-los. Pelo entendimento são produzidas as “representações”. 4 O entendimento é o legislador da natureza e só consegue exercer a sua função se instigado pela razão que nos leva às novas descobertas e assim ao progresso.

Para Kant as unidades incondicionadas para quais nos dirigem as três idéias da razão: a idéia da alma, a idéia de mundo e a idéia de Deus jamais conheceremos. Desse modo o uso transcendente da razão está fadado ao fracasso.

Contudo se não posso conhecer pela razão este fato não torna o “objeto” inexistente. Kant é enfático. Não se pode provar, por exemplo, que Deus não existe, porque o conhecimento só pode se exercer sobre fenômenos. Kant inaugurou uma “Moraltheologie” substituindo o antigo dilema “ou a filosofia ou a fé” por “e a filosofia e a fé”. Estabeleceu desta forma uma nova teologia exclusivamente fundada sobre a moral.

Segundo este filósofo, a revelação pode compreender em si, também a religião racional pura, mas esta não pode conter a primeira. Há duas esferas e a revelação é a maior das duas. A amplitude da filosofia é menor e é assim que o filósofo deve se ver, contido pela religião. Assim sendo uma harmonia entre as duas ciências pode existir garantindo-lhes uma coexistência pacífica.

Kant restringe a filosofia daí a sua afirmação “Arruinei o saber para abrir as portas da fé”. Para este pensador a ciência é relativa, mas com as afirmações da consciência, com a lei moral atingimos o absoluto. Este filósofo começa com a razão e percebe nela limites e ao ultrapassar estes limites deve vigiar-se com muita atenção, pois aponta para alguma coisa que a razão não consegue explicar.

Quando o teólogo prova a existência de Deus através da leitura da Bíblia ele o faz não com base na razão, mas com base na fé. Não se pode deixar que se contamine a teologia bíblica pura com os males advindos do espírito da liberdade da razão. Na medida em que se confundem os dois assuntos não será mais possível elaborar um conceito exato da especificidade de cada uma delas. O teólogo bíblico deve procurar nas suas reflexões uma abertura sobrenatural da compreensão por um Espírito que o conduza à verdade total e não imiscuir a razão de modo a se afastar da real idéia.

Kant conclui no seu estudo sobre as faculdades que os teólogos têm o dever e, portanto, a competência (a todo dever corresponde um direito; se devo, posso) de manter a fé bíblica sem violar a liberdade que os filósofos têm de submetê-la à crítica da razão.

No prefácio à primeira edição da Religião nos limites da simples razão, Kant afirma que a moral não precisa da religião. Mas existe uma relação muito estreita entre a moral e a religião. Reafirma que o ser moral não necessita de nenhuma finalidade. É a ética do dever por dever, pretensão kantiana, totalmente desinteressada, contra a denominada moral da recompensa na qual o dever é cumprido tendo em vista algum retorno, ainda que não material.

Portanto a moral não precisa se fundamentar na religião, mas basta-se a si mesma em virtude da razão pura prática. Todavia a religião pode ser uma referência necessária. O agir moral correto tem como referência necessária a religião, o bem supremo. Este bem supremo é o nexo entre a natureza do homem e a liberdade. A idéia de um bem supremo no mundo não é vazia. Ela deriva da moral e não é seu fundamento, mas é um fim, que ao ser sugerido já traz, implicitamente, princípios morais. Dessa forma a moral conduz necessariamente à religião

... pela qual se estende fora do homem, à idéia de um legislador moral generoso, cuja vontade é fim último (da criação e do mundo) o que ao mesmo tempo pode e deve ser o fim último do homem.5

Para ele não é preciso Deus para se fundamentar a moral. E mais a lei moral não teria sentido se o homem não fosse livre e é isso que se quer expressar com as palavras: deves logo podes. A liberdade é o agir em conformidade com a lei moral para Kant. É a ação segundo princípios internos e não por motivos externos. E é assim formulada a lei moral de Kant:

Age de tal modo que a máxima da tua vontade possa valer sempre ao mesmo tempo como princípio de uma legislação universa (p. 54; P 30).

Kant dá primazia à religião prática, legisladora suprema, à qual a própria religião deve subordinar-se. O homem encontra-se só, com a sua consciência, e não há favoritos no céu. Todos têm as mesmas condições e cada um opera a sua própria salvação. Kant sempre disse que “um pretenso saber” não pode deixar de ser prejudicial ao homem. Aos seus alunos ele escreveu em 1765:

Os alunos devem ir à escola, não para aprender os pensamentos, mas para aprender a pensar e a conduzir-se.

Com tal reflexão sobre o ato de educar Kant quis fazer da lucidez uma virtude e da recusa de enganar-se um meio de sabedoria.

CAPÍTULO II PRINCÍPIOS DA FILOSOFIA DA RELIGIÃO EM HEGEL

A filosofia de Hegel é o ponto máximo do idealismo alemão. Hegel se propõe a exceder os sistemas de Fichte e Schelling. Em Fichte reprova o dualismo encontrado em suas reflexões e em Schelling critica o fato de ter ele feito do Absoluto, um abismo onde todas as diferenças desaparecem e de não ter concebido o Absoluto como “desenvolvimento de si”. Em Hegel o conceito fundamental da sua filosofia é a liberdade e o direito6.

Para Hegel não existe uma história da filosofia neutra, mas se a fizermos com a coragem da verdade e fé no poder do espírito é possível entrar na filosofia. E é pela história da filosofia que se é iniciado na filosofia. Hegel se propõe a estudar na sua história da filosofia o pensamento e suas características - atividade e liberdade- aqui com traços kantianos. O pensamento verdadeiro é imutável e produz efeitos.

Hegel considera íntima a relação da filosofia com a religião e também com as outras ciências. Quanto ao confronto da história da filosofia com a história da religião no que se relaciona ao conteúdo interno àquela não se atribui um conteúdo de verdade fixo e imutável desde o princípio como acontece com a religião e, portanto a religião está livre das contradições que ocorrem com a filosofia. Na filosofia existe uma dialética interna que vai se mostrar na contradição - se história é uma representação de uma série sucessiva de formas passadas de conhecimento a verdade não pode estar nessa sucessão porque ela é, simplesmente, não passa. A história interna abriga a verdade e a história externa contém as vicissitudes, os desejos do espírito.

Para Hegel a filosofia é a ciência objetiva da verdade onde não cabem as opiniões, pois é uma ciência do conhecimento através dos conceitos e não de opiniões ou deduções. Há uma oposição na filosofia de dois lados: de um lado o “pietismo declara” que não se pode conhecer a verdade e que se deve sobpor a razão à fé cega e autoritária. De outro lado a razão tenta tornar racional o cristianismo. Assim o homem não seria obrigado a aceitar o que sua razão rejeitasse.

Nesse sentido a convivência entre religião e filosofia não seria nada tranqüila. Para Hegel o conhecimento do infinito não é impossível como o é para Kant. Contudo não se chega à verdade por imediata percepção dos sentidos, mas através de um esforço de reflexão. O fato de haver uma diversidade de filosofias também não é para ele um obstáculo, pois a verdade é uma e elas têm em comum o fato de serem filosofias e, além disso, o erro pode possibilitar, posteriormente, uma aproximação à verdade.

Na sua reflexão o Absoluto é atividade e dela decorre o conteúdo. O Absoluto em Hegel é, ao mesmo tempo, o objeto e o sujeito da filosofia. Ele é o princípio infinito da realidade como também o é para Fichte e Schelling. O papel da filosofia, segundo Hegel, é levar o homem ao concreto e o concreto é a solução do sair de si e voltar a si. Desse modo a filosofia hegeliana é o espírito compreendendo a si mesmo. Neste raciocínio    Hegel questiona

o    fato,    para    ele impossível, de algo que tendo como sede a razão não    ser racional. E

acrescenta:

Deve existir já a fé racional de que o ocaso não rege os acontecimentos humanos; e a missão da filosofia consiste precisamente em reconhecer que,    muito embora as

suas manifestações específicas devam ser também história,    são, no entanto

determinadas só pela idéia. 7

Costuma-se dizer que Política e Religião influem na Filosofia e vice-versa, mas Hegel discorda de tal posição. Para ele a relação que há entre elas não nasce na influência nem no efeito de uma sobre outra. Hegel concorda com Aristóteles na assertiva o homem começa a filosofar depois de ter provido às necessidades da vida (Metafísica, 1, 2). Uma visão valorizada da filosofia. O homem começa a filosofar na angústia advinda do descrédito às formas antiquadas da religião, quando já não há prazer na vida real, e diante das experiências marginais e da aproximação da decadência e do final. A reconciliação, entre vocação natural e a realidade externa, a “pacificação” destas dissensões vai surgir no mundo do pensamento. Uma atitude que todos os filósofos da história da filosofia tomaram.

Com relação ao elemento da filosofia este como o das ciências é formado pelo conhecimento e pelo pensamento; mas os objetos das ciências são principalmente finitos e fenômenos. Junto a Espinosa, Hegel atenta para o fato de que embora a filosofia se ocupe de coisas finitas, estas devem ser consideradas como repousando na idéia divina; assim a filosofia e religião têm a mesma finalidade. O objeto da filosofia e da religião é a razão universal existente em si e por si.,e deste modo Hegel vê na religião o início da história da filosofia uma vez que as manifestações religiosas surgiram bem antes das filosóficas.

Os povos mostravam nas religiões a sua maneira de reproduzir a essência do mundo, o princípio da natureza e do espírito, o modo como se relacionavam com o outro que está muito além deles mais ou menos compadecido ou aterrador. Com o culto eles destruíam esta oposição e se conciliavam com Deus.

Para Hegel “a religião deve ser considerada do mesmo modo que a filosofia e avaliada racionalmente como produto da razão que se patenteia a si mesma e dela é o mais elevado e mais racional conteúdo”. 8 Há uma íntima relação da filosofia com a religião. Em Hegel a filosofia se apóia nas mesmas bases da religião, o objeto de ambas é idêntico, é a razão universal existente em si e por si. Na religião pode-se encontrar uma filosofia definida.

Importante observar que apesar da afinidade visível entre religião e filosofia, Hegel aponta a manifesta intolerância desta por aquela. Parece-lhe que a religião quer que o homem se abstenha da filosofia e de pensar nos “objetos universais”, pois se reduzem à sabedoria humana e são obras humanas e como tais se colocam contra a obra divina. Esta depreciação do humano é uma injustiça que se faz à razão. Se a obra da natureza é divina muito mais o será a obra do homem que foi criado à imagem de Deus e cuja superioridade sobre os animais e vegetais é implícita e explicitamente admitida.

Na verdadeira religião se desvela o espírito absoluto que se torna evidente na consciência daquilo que é finito. A religião entra na esfera da subjetividade, na região de ordens finitas de representações, mas enquanto principal e imediata revelação de Deus não é a exclusiva via de divulgação de Deus aos homens, mas se revela dessa forma, pois é a única compreensível à consciência religiosa.

A verdade que chega até ao homem pela religião é exterior ao homem e ele deve se contentar com isto uma vez que sua compreensão é limitada e sua razão humana não a atinge, é assim que a religião se posiciona. Há, muitas vezes, um mediador, que não é o conteúdo da doutrina, que anuncia esta verdade que chega a ele sob a forma de objeto sensível e presente. Ratificando, Hegel diz a religião cristã apresenta a característica peculiar da pessoa de Cristo, no seu caráter de Filho de Deus, participar da natureza de Deus.

Quanto à filosofia Hegel se refere a ela como conhecedora da essência e o ponto determinante é que a essência não é exterior àquilo de que é essência. A essência do meu espírito é meu próprio espírito, não alguma coisa fora dele. 9

Hegel assim percebe a filosofia, primeiramente, ligada e isolada no campo do paganismo grego; depois com propriedade se desliga da religião popular e avoca uma hostilidade contra ela; e por fim acerta-lhe o âmago e nela se reconhece. A religião e a filosofia têm segundo Hegel, o conteúdo comum.

Para Hegel não há mistério que não possa ser racionalizado. O mistério o é para o intelecto e não para a razão. A filosofia opõe-se, contrariamente, ao chamado racionalismo da nova teologia. Quando o intelecto se presume mestre sem entender a verdade religiosa, desvia-se da meta. O racionalismo se coloca contra a filosofia no conteúdo não menos que na forma. Reduziu “a realidade total a relações finitas; e quanto à forma reduziu-a a um processo raciocinante não livre, e incapaz de conceber”. 10

Na opinião de Hegel a religião tem em comum com a filosofia “o substancial, o conteúdo”, e este conteúdo não é o terreno mas o infinito. Este infinito para ele aparece primeiramente na religião. Dessa maneira a religião precede a filosofia temporalmente. Mesmo tendo ambas, supostamente, o mesmo conteúdo, Hegel privilegia o conhecimento filosófico. Assegura que somente este alcança efetivamente o real significado das idéias do infinito. Segundo Hegel a religião faz uma “representação” do conteúdo universal. Isto significa que a religião não consegue congraçar, realmente, o espírito finito e o infinito.

Hegel sobre a religião e filosofia faz a diferenciação. A filosofia tem a vantagem de compreender a religião e assim compreender também o racionalismo, não menos que o sobrenaturalismo; e além disso, compreende-se a si mesma. Isto não acontece com a religião, a qual permanecendo no horizonte da representação, compreende só o que dentro deste horizonte se encontra, e não a filosofia, o conceito, o pensamento universal. 11

Para Hegel a filosofia precisa da religião, mas a religião dela não necessita. A religião já está aí dada, existe. Não é algo que depende de nossa vontade ter ou não tem. Sua filosofia consegue dar conta da religião, vai compreendê-la, provavelmente, melhor que a própria religião se compreende. A filosofia não existe para tornar o homem religioso, embora isto possa acontecer. A filosofia não tem sentido edificante como o tem para Kierkegaard. Para o eminente filósofo seu objetivo no campo religioso é mostrar a verdade da religião. A filosofia é uma espécie de justificativa para a religião.

Essencialmente a concepção filosófica de Hegel é muito difícil e extremamente complicada. Sua forma particular de idealismo não implicava numa descrença da existência de objetos materiais. Ao mesmo tempo, ele assegurava que somente o Absoluto era inteiramente real e suas partes aparentemente distintas detinham realidade unicamente por serem parte de um todo. Sustentava que a filosofia, a religião e a arte eram meios de se conhecer o

Absoluto, mas dava à filosofia o status de ser a forma superior de compreensão acima da religião e da arte.

O pensamento hegeliano fez época e dominou a vida filosófica até meados do século dezenove e a partir daí teve várias interpretações, contudo sem deixar de ser considerado um dos grandes pensadores da humanidade.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Não se consegue ler Kant sem se dar conta da extraordinária força de seu pensamento o mesmo ocorrendo com Hegel e, por conseguinte, da inevitável insuficiência dos resumos, mas neste relato tentei colocar as principais idéias sobre a filosofia e religião destes grandes pensadores. Nestas considerações me proponho um paralelo entre os dois paradigmas filosofia e teologia.

A filosofia kantiana pode ser considerada mais determinante por ter concebido o espírito como Consciência e por conter somente determinações da fenomenologia, e não da filosofia do espírito. Considera o eu como em relação com algo que está além. Reinhold a interpreta como teoria da Consciência sob o nome de faculdade representativa. Já Hegel quer dizer que a noção de consciência implica a relação da Consciência com um objeto que não é Consciência, mas alguma outra coisa; e que a noção de conceito ou de espírito elimina esta alteridade. Diversamente de Kant, Hegel entende que espírito ou conceito é uma Autoconsciência infinita, um Princípio absoluto que se autocria e assim cria a própria realidade em sua totalidade. Para Kant a relação se estabelece entre o eu e algo diferente do eu.

Segundo Kant é a limitação humana que faz o homem procurar para todas as suas ações uma finalidade e o que deve regular a ação humana não é nenhuma finalidade, mas a idéia do Bem Supremo.

Assim, interpretando Kant, fica muito claro a sua idéia - a Religião não pode ir de encontro à razão mas também a razão não pode pesquisar doutrinas religiosas. O conhecimento total do mundo é descartado por Kant. Kant não é um revolucionário ele é um reformista, julga que dogmas e doutrinas podem ser reformados pela Razão e que se deve ter liberdade, é claro dentro dos seus princípios morais, para crescer em conhecimento. Considera que a religião estatutária é veículo para a religião da razão. Mesmo as digressões fornecem implementos para o desenvolvimento das doutrinas como foi o caso das heresias. Através de sua refutação cresceu o entendimento sobre a doutrina cristã. Kant interpreta a Graça e o Batismo filosoficamente sem desmerecer a doutrina de ambos.

Hegel tem uma visão limitada da teologia. Para ele a religião fica presa à representação. Vê a passagem de Deus na terra como metáfora. Para este pensador temos que ver o mundo como ele é e não como parece ser.

Diferentemente de Kant, Hegel faz uma separação hermenêutica entre entendimento e razão. O entendimento no campo do finito, com capacidade inferior à da razão que pode captar o infinito. Através da razão o homem consegue captar Deus. No idealismo de Hegel, o mundo para ser mundo necessita do espírito que o vê como mundo. Tudo o que existe existe para o Sujeito (a comunidade). Pensar Deus sem a sua comunidade é o abstrato. A permanência do finito é indispensável para a existência do infinito. Para Hegel é impossível falar de Deus e não falar de religião e vice-versa.

A proposta de Hegel não é fazer Teologia filosófica e estudar Deus em si mesmo como os teístas ingleses do século XVII faziam. Sua proposta é descobrir o que há de verdade nos dogmas, nas supertições e não entender a religião apenas como uma produção humana. Para Hegel, na religião não só sabemos algo a respeito de Deus, mas também Deus fica sabendo algo a respeito de si mesmo.

Entretanto, para Kant haverá sempre o dualismo entre a razão e a religião. A nossa razão é limitada porque humana e a religião- revelação -está numa esfera mais ampla, como que em um círculo externo que envolve ou não a razão num círculo menor, interno e que podem existir separadamente. Para ele estes círculos podem existir separadamente, não têm o mesmo eixo fixando-os e fazendo com que só tenham existência juntos.

No que diz respeito à compreensão da totalidade Hegel e Kant estão em lados opostos. Para Hegel a Razão tem que dar conta do conhecimento do mundo em sua totalidade e para Kant este conhecimento total é descartado como uma impossibilidade humana. Quer fazer uma superação do conhecimento bíblico, uma Teologia filosófica.

Sabe-se ser uma exigência da modernidade a legitimação de tudo pela Razão inclusive a Religião, o que para Kant não é aceitável, pois como já disse à razão não compete “diligenciar” a religião. Já Hegel tenta fazer isto e na opinião de muitos teólogos nesta tentativa ele, de um lado legitima e de outro questiona a Teologia Bíblica.

Observa-se que o referencial para Kant é o iluminismo. Para este Filosofia e Teologia podem conviver, tranqüilamente, sem contradições visão esta diferente da percepção de Hegel que não vê assim a coexistências das duas ciências. Entende-se que o filósofo chega ao mesmo conteúdo do teólogo. Aquele pela via da razão e este através da revelação, enveredam caminhos diversos, mas confluentes.

A religião revelada está aí, não é uma abstração, existe concretamente. A filosofia vai dizer que há nela uma razão de ser que pode ser explicada pela razão e que os teólogos chegaram a ela por outro caminho.

Segundo Hegel a filosofia apóia-se nas mesmas bases da religião, enquanto o objeto de ambas é idêntico, isto é, a razão universal existente em si e por si. O espírito quer fazer seu este objeto, como precisamente faz a religião por meio do rito e do culto. Hegel se entende como aquele que vai resgatar a verdade, tirá-la do subjetivismo no qual foi jogada por tantos que não souberam ou não puderam ser tão objetivos quanto deveriam ter sido. É um filósofo anti-subjetivo.

Diferentemente de Kant, Hegel na sua filosofia afirma ser ela capaz de oferecer o conceito como uma norma capaz de ser superior à religião, facultando algo de melhor. Para Hegel é na filosofia, que se forma o espaço, mais que na religião ou na arte, no qual o Absoluto atinge a completa transparência e pela qual a reconciliação do sujeito independente e a natureza, a sociedade e Deus é afinal obtido. Para Kant isto é uma impossibilidade do homem, exatamente, por sua limitação humana.

Em Hegel é possível uma “coexistência pacífica entre a religião e filosofia”. Isto, contudo, não significa que ele retira a necessidade da existência da religião porque ela não consegue explicar o Absoluto em termos aceitáveis racionalmente. Papel que ele idealizou para a filosofia cumprir, talvez num entusiasmo aumentado pelas circunstâncias da sua época.

Hegel e Kant deram grande contribuição à apologética contemporânea. G. W. F. Hegel com suas reflexões forneceu o suporte para a abordagem universal-histórica de Wolfhart Pannenberg. O tomismo transcendental dos pensadores católicos romanos, especialmente, Rahner e Lonergan utilizou a filosofia crítica de Kant e a antropologia existencialista de Heidegger como ponte para voltar à meta física aristotélica de Tomás de Aquino.

BIBLIOGRAFIA

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BONACINI, Juan A. Kant e o Problema da coisa em si no idealismo alemão. Rio de Janeiro. Relume-Dumará. 2003.

COLLINSON, Diané. 50 Grandes Filósofos: Da Grécia antiga ao século XX. Contexto. São Paulo. 2004.

DREHER, Luis H. Hegel e a Crítica da Representação Religiosa na Fenomenologia do Espírito. Numen. Juiz de Fora, v. 1, n1.1998.

DURANT, Will. Os grandes pensadores. Companhia Editora Nacional. São Paulo. 1965 PASCAL, George. O Pensamento de Kant. Vozes. Petrópolis. 1992.

KANT, Emmanuel. A Religião nos Limites da Simples Razão. Lisboa. Edições 70, 1992. _O Conflito das Faculdades. Lisboa. Edições 70. 1993.

_Fundamentação da Metafísica dos Costumes e Outros escritos. Martin

Claret. São Paulo. 2004.

1

   -KANT, Emmanuel. A crítica da razão pura, A IX; TP 6.

2

   - ARAUJO, Paulo Afonso. Ética e Filosofia política. Juiz de Fora. 1997. V.2. n. 2 . p. 71.

3

- Idem.p.73

4

- Representação , para Kant deu um significado muito geral para este termo, considerando-o gênero de todos os atos ou manifestações cognitivas, independentemente de sua natureza de quadro ou semelhança.

5

   -KANT, Emmanuel. A Religião nos Limites da Simples Razão. Lisboa. 1992, p.14.

6

   - Entende Hegel por direito o conjunto de normas, de leis e por ser abstrato tem que ser completado com a moralidade. Na opinião de Hegel é à sociedade e à razão que na moral se torna exterior é que se deve buscar as regras de conduta e não à subjetividade..

7

-Aqui Hegel se refere à história da filosofia como ciência e não como um amontoado de fatos, mas uma sucessão de fenômenos que se organizaram por meio da razão e cujo conteúdo é a razão e aquilo que a revela. Mostra que os acontecimentos que assinala estão na razão.

8

   -A mesma tese de Voltaire. É de fato absurda, segundo Hegel, a hipótese de terem os sacerdotes inventado uma religião, enganado os povos por interesse próprios. Houve abusos mas a religião, no seu caráter distintivo, mantém fortemente apoiados os mais altos valores em contraste aos fins temporais e sobre aqueles edifica uma religião sublime.

9

   -HEGEL, Introdução à História da Filosofia in: Os Pensadores . Hegel. V. 2. São Paulo. Nova Cultural, 1989. p. 134.

10

   -Idem p. 136

11

   -Ibidem. P.138

KANT E DARWIN SOBRE A NOÇÃO DE TELEOLOGIA EM BIOLOGIA: DA AUTONOMIA NA CONSIDERAÇÃO DO ORGANISMO À AUTONOMIA NA CONSIDERAÇÃO DAS POPULAÇÕES

KANT E DARWIN SOBRE A NOÇÃO DE TELEOLOGIA EM BIOLOGIA: DA AUTONOMIA NA CONSIDERAÇÃO DO ORGANISMO À AUTONOMIA NA CONSIDERAÇÃO DAS POPULAÇÕES

Adriano Perin Universidade Federal de Santa Catarina

Resumo: Este artigo apresenta a contribuição de dois autores clássicos no que concerne à fundamentação filosófica da biologia. Argumenta-se que esta fundamentação reside essencialmente na legitimação de duas noções de teleologia que permitem pensar a biologia contemporânea enquanto dotada de dois domínios auto-suficientes de investigação, a saber, a biologia funcional e a biologia evolutiva. Sustenta-se inicialmente que, frente a duas posições igualmente vistas como inapropriadas, isto é, a explicação mecanicista e a teologia natural, Immanuel Kant é o precursor da legitimação da noção de teleologia na consideração do organismo individual. Num segundo momento sustenta-se ainda que Charles Darwin institui a legitimação de uma noção de teleologia que permite pensar a autonomia da biologia enquanto ciência em termos populacionais.

Palavras-Chave: I. Kant, C. Darwin, teleologia, biologia funcional, biologia evolucionária.

FUNDAMENTO V. 1, N. 1 - SET.-DEZ. 2010

Abstract: This paper presents the contributions of two classical authors to the philosophical foundation of biology. The paper will argue that such a foundation is essentially grounded upon the justification of two notions of teleology, which assure the establishment of contemporary biology as endowed with two selfsufficient domains of investigation, namely, functional and evolutionary biology. Initially, it is sustained that, in face of two positions both seen as inaccurate, i.e., mechanic explanation and natural theology, Immanuel Kant is the first to present the justification of a notion of teleology in the consideration of the individual organism. Secondly, it is sustained that Charles Darwin institutes the justification of a notion of teleology which assures the autonomy of biology as a science in what matters to the consideration of populations.

Key-Words: I. Kant, C. Darwin, teleology, functional biology, evolutionary biology.

Introdução

A principal tarefa a ser desempenhada por uma filosofia da biologia consiste na garantia da autonomia da biologia enquanto ciência sem que, para isso, seja necessário recorrer às leis gerais da natureza fisicamente explicadas ou a uma visão criacionista como

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elementos de fundamentação. Para tal, exclui-se de princípio qualquer percurso de cunho mecanicista, vitalista ou mesmo teológico. Neste empreendimento, o problema seminal a ser encarado é como legitimar a biologia sem poder contar com leis, quer físicas quer ditadas por um artífice supremo. No presente trabalho, tendo em conta esta especificidade da biologia, argumenta-se que é possível encontrar na noção de teleologia um elemento chave para compreender não apenas a caracterização das investigações acerca dos seres auto-organizados antes da teoria da seleção natural de Charles Darwin, mas também - e precisamente - a estrutura da biologia contemporânea enquanto dividida em dois domínios de investigação auto-suficientes, i.e., a biologia funcional e a biologia evolutiva.

Considerando que essa proposta de uma análise sistemática da biologia contemporânea em dois domínios de investigação irredutíveis compreende também a necessidade de se pensar dois modos de teleologia distintos que atuam em cada um deles, o trabalho é desenvolvido em duas seções. A primeira seção pondera o “nascimento” da noção de teleologia antes de Darwin. Quanto a este ponto argumenta-se que, entre as propostas igualmente vistas como inapropriadas do ponto de vista da garantia da autonomia da biologia contemporânea, - a saber, a explicação mecanicista e a teologia natural - a consideração kantiana da teleologia apresenta uma importante contribuição para um dos modos de teleologia admitidos

atualmente. Ou seja, argumenta-se que a proposta kantiana já leva em

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conta que para a consideração da estrutura do organismo individual é necessário legitimar uma noção de teleologia que, justamente por não ser uma lei, não pode ser “retirada” da física ou da teologia. As informações histórias de Mayr acerca das concepções dos “cientistas físicos” e dos “teólogos naturais” nos séculos XVII e XVIII foram de suma importância para esta parte do trabalho. Contudo, a própria argumentação da primeira seção objetiva mostrar que a opinião de Mayr - expressa particularmente no seu livro What Makes Biology Unique? - de que a consideração kantiana da teleologia “foi um completo desastre” (Mayr, jul. 2004) não parece fazer jus à argumentação de Kant. A segunda seção do trabalho pretende mostrar que, se Kant já teria reconhecido a autonomia da biologia no nível do organismo individual, foi apenas a partir de Darwin que esta autonomia poderia ser pensada em termos populacionais. É nesta última seção que se apresenta a distinção entre a biologia funcional e a biologia evolutiva em relação aos conceitos básicos, à questão a ser respondida, e ao método de investigação peculiares de cada um destes domínios. Argumenta-se que a auto-suficiência dos mesmos domínios se deve essencialmente à compreensão de que na biologia funcional a noção de teleologia atuante é a teleologia intra-orgânica, a qual é “necessária ou específica”, enquanto que a biologia evolutiva é regida pela teleologia da adaptação, que é “indeterminada ou inespecífica”.

i - Entre a explicação mecanicista e a teologia natural: a

contribuição kantiana para a noção de teleologia em biologia

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No final do século XVII e durante o século XVIII a consideração dos fenômenos biológicos era basicamente justificada de dois modos: (i) mediante a compreensão de que os mesmos deveriam ser explicados mecanicamente da mesma forma que os fenômenos físicos, sendo que a recorrência a um ser supra-natural serviria apenas como um elemento último de fundamentação; (ii) mediante a compreensão de que tais fenômenos deveriam sim ser explicados de modo diferente dos fenômenos físicos, sendo, contudo, isso possível por meio de uma recorrência imediata à teologia natural.

O exemplo sui generis da concepção mecanicista dos fenômenos biológicos é apresentado na discussão cartesiana sobre o corpo humano. Para Descartes, tudo que se passa no corpo somente pode ser conhecido mediante uma explicação na qual os objetos são a extensão, a figura e o movimento. Essa concepção aparece claramente no Tratado do Homem:

Desejo, digo, que considereis todas estas funções somente como conseqüência natural da disposição dos órgãos nesta máquina, do mesmo modo que ocorre com os movimentos de um relógio ou de um outro autômato, pois tudo acontece em virtude da disposição de seus contrapesos e das suas rodas. De sorte que não devemos considerar nesta máquina nenhuma alma vegetativa, nem sensitiva e nenhum outro princípio de movimento e de vida, além do sangue e de seus espíritos que são agitados pelo calor do fogo que arde FUNDAMENTO V. 1, N. 1 - SET.-DEZ. 2010 continuamente no coração e cuja natureza não difere dos outros fogos que se encontram nos corpos inanimados (Descartes,1973,p. 202).

Ora, este trecho deixa claro que Descartes só concebe a possibilidade de explicação das funções do corpo humano na medida em que estas funções são equiparadas ao funciona-mento das peças em uma máquina. Isso quer dizer que, ao ver de Descartes, mesmo um elemento a primeira vista tão orgânico como a circulação do sangue no corpo humano pode e deve ser explicado apenas mecanicamente: o princípio que rege a circulação do sangue é o mesmo princípio que rege o movimento de qualquer peça em um corpo inanimado. Por mais imprópria que uma explicação de tal caráter pudesse ser para os fenômenos biológicos ela era vista como a única que poderia ser cunhada no domínio da ciência. Nesse sentido, pode-se citar o exemplo de que nos séculos XVII e XVIII a fricção do sangue nos vasos sanguíneos foi aceita por mais de 150 anos como justificativa do sangue quente dos mamíferos e pássaros (Cf. Mayr, 1998a, p. 119).

Descartes pode ser visto como o precursor de uma tradição que concebia a explicação dos fenômenos biológicos como redutível a uma explicação mecânica dos fenômenos físicos. Como o trecho supracitado traz claramente presente, nessa tradição era quase unânime a comparação de um corpo orgânico ou animado com um relógio, de modo que qualquer função daquele poderia ser justificada do mesmo modo que são explicados os movimentos deste, a saber, FUNDAMENTO V. 1, N. 1 - SET.-DEZ. 2010 mediante os princípios da mecânica. Como nota Mclaughlin (2001, p. 21): “Os primeiros cientistas e filósofos modernos frequentemente falam do mundo como a machina mundi, e dificilmente alguém que era alguém entre Descartes e Kant negou a comparação do sistema do mundo com um relógio”. Essa tradição tem seu ápice com o estabelecimento das leis da física por Newton e foi proclamada no pensamento dos seus seguidores. Os Principia de Newton compreendem precisamente a proposta de “uma mecanização de todo o mundo inanimado em base matemática” (Mayr, 1998a, p. 118).

O que é comum de toda essa escola de pensamento - desde Descartes até Leibniz - que defendia uma visão mecanicista da natureza na qual os fenômenos biológicos só eram vistos como passíveis da mesma explicação que era atribuída aos fenômenos físicos, era que todos estes “cientistas físicos viam em Deus o poder que, no momento da criação, instituiu as leis que governam os processos deste mundo” (Mayr, 1998a, p. 127). O problema dessa visão mecanicista do mundo é de que, para considerar as posições de Newton e Leibniz, tanto um ato de criação constante como um ato de criação instituído mediante uma harmonia pré-estabelecida deixa como dilema os detalhes da vida de cada indivíduo ou organismo criado. Como nota Mayr (1998a, p. 66):

[A] aparente finalidade do universo, os processos orientados para um objetivo, no desenvolvimento dos indivíduos, bem como a adaptação dos órgãos eram algo por demais evidente para ser ignorado pelos mecanicistas. Como poderia um mecanismo ser dotado de todas essas propriedades, como FUNDAMENTO V. 1, N. 1 - SET.-DEZ. 2010 puro resultado de leis, sem o concurso de causas finais? Talvez ninguém mais do que Kant tinha uma consciência aguda desse dilema.

E, de fato, a “Dialética da faculdade do juízo teleológico” da Crítica da Faculdade do Juízo tem como intenção primeira reconciliar a concepção teleológica dos organismos expressa na “Analítica da faculdade do juízo teleológica” da mesma obra com a consideração mecanicista da natureza defendida por Kant nas suas obras anteriores. Contudo, para averiguar a especificidade da contribuição desta proposta para a noção de teleologia em biologia bem como pontuar as suas diferenças em relação ao desenvolvimento da noção de teleologia na estrutura contemporânea da biologia (sendo este último ponto o propósito da próxima seção), é pertinente considerar rapidamente ainda um modo de explicação dos fenômenos biológicos alternativo à redução dos mesmos aos fenômenos físicos, mas que também seria justificado mediante visão teológica do mundo, a saber, a teologia natural.

A teologia natural tem como um dos seus principais representantes no início do século XVIII Christian Wolff, que foi o primeiro pensador a fazer uso do termo “teleologia”. Nas palavras de Wolff: “Além destas ciências [que integram a física] há também outra parte da filosofia natural que explica a finalidade das coisas. Não há nome para esta disciplina, apesar de ser muito importante e mais do que útil. Ela poderia ser chamada teleologia”. (Wolff, 1963, p. 44). Wolff introduziu o termo “teleologia” na linguagem filosófica para FUNDAMENTO V. 1, N. 1 - SET.-DEZ. 2010

denotar “o estudo das intenções de Deus ao criar o mundo e as diversas coisas nele. Isso é precisamente o tipo de coisa que Descartes e os outros heróis da Revolução Científica baniram da ciência e da sua filosofia” (Mclaughlin, 2001,    p.16).    Carregada desse sentido

proeminentemente teológico a noção de “teleologia” nasce com o objetivo de “mostrar como Deus é conhecido a partir das coisas naturais”. (Wolff, 1963, p.51). Quer dizer, “[a] teleologia confirma o conhecimento de Deus que é estabelecido na teologia natural”. (Wolff, p.51).

Ao cunhar a noção de teleologia no sentido referido Wolff objetiva garantir que os fenômenos biológicos devem ser explicados de forma diferente dos fenômenos físicos. E isso porque “[a] física demonstra a causa eficiente das coisas naturais, enquanto que a teleologia demonstra as suas causas finais”. (Wolff, 1963, p.51). A possibilidade da última demonstração, segundo Wolff, se deve ao reconhecimento direto da figura do criador nos organismos criados. Com isso, Wolff se distancia bastante de Leibniz por conceber que os fenômenos biológicos não mais deveriam ser apenas compreendidos como incluídos no grupo dos fenômenos regidos pelas leis gerais da natureza, que em última instância são fundamentadas mediante recorrência a um artífice supremo, mas sim que a sua justificação consiste na descrição individual e imediata da sua criação pelo mesmo artífice.

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Buffon e Lineu, não obstante consideráveis diferenças de pensamento, foram adeptos da explicação dos fenômenos biológicos a partir da teologia natural. A principal intenção destes autores foi precisamente garantir a autonomia dessa explicação em relação a uma explicação mecanicista. É assim que Buffon concebe que “alguns temas são excessivamente complicados para um uso aproveitável da matemática, colocando entre eles todas as partes da história natural” (Mayr, 1998a, p. 58). Do mesmo modo, Lineu empreende seus trabalhos de classificação botânica e zoológica pautado não por princípios gerais da mecânica, mas sim por princípios fisiológicos de ordem prática (Cf. Mayr, 1998a, p. 210).

Ora, se Buffon e Lineu diferem consideravelmente pelo fato do primeiro estar preocupado com a compreensão da diversidade natural e o segundo com o estabelecimento de um procedimento taxonômico que favorece a identificação dessa diversidade, é de se notar que estes autores concordam no fato de que o único modo de escapar do reducionismo da explicação biológica em relação a uma explicação mecanicista da referida diversidade é descrever a mesma como produto imediato da criação de um artífice supremo. Em uma palavra, se os cientistas físicos recorriam a Deus como o elemento último de fundamentação das leis que governam o mundo explicado mecanicamente, “[e]m contraste, os naturalistas devotos, que estudavam a natureza viva, concluíam que as leis básicas de Galileu e

Newton eram desprovidas de sentido quando relacionada à

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diversidade e à adaptação do mundo vivo. Mais do que isso, eles viam a mão de Deus mesmo nos mais insignificantes aspectos da adaptação e da diversidade” (Mayr, 1998a, p. 127).

Em 1763 Kant publica um escrito intitulado O único argumento possível em suporte a uma demonstração da existência de Deus . Nesse texto pré-crítico já se encontra colocado o problema antinômico fundamental da “Dialética da faculdade do juízo teleológico” da Crítica da faculdade do juízo de 1790: Como reconciliar as exigências aparentemente conflitantes entre uma consideração mecanicista e uma consideração teleológica dos seres vivos? Ou, como estabelecer uma consideração teleológica não contraditória com uma consideração mecanicista? Ora, se o problema é o mesmo daquele a ser amplamente abordado na terceira Crítica, a solução de Kant no referido texto de fato não seria a mesma. É assim que Kant em 1763, do mesmo modo que Buffon e Lineu, vê na combinação aparentemente contingente das partes dos organismos vivos não uma submissão destes às leis universais e necessárias da natureza, mas sim uma prova imediata da sua criação por um artífice supremo:

Considere o exemplo da estrutura de um animal. Os seus órgãos da percepção sensível são conectados com os órgãos do movimento voluntário e da vida, e conectados de um modo tão genioso que a partir do momento que a atenção de alguém se voltar para ele só com uma disposição mal intencionada [boshalft] (para a FUNDAMENTO V. 1, N. 1 - SET.-DEZ. 2010 qual ninguém poderia ser tão irracional) para não reconhecer a existência de um Sábio Autor, o qual tem ordenado tão excelentemente a matéria da qual o animal é constituído (KANT, 1928, p.125).

E qual seria a alternativa restante para a consideração dos fenômenos biológicos no século XVIII? Como explicar estes fenômenos de um modo não mecanicista sem recorrer à “mão imediata” de um artífice supremo? Este parece ser o problema fundamental da justificação da biologia enquanto ciência. Cabe como propósito do final desta seção mostrar que o próprio Kant na terceira Crítica da um passo importante em relação a esta justificação.

A obra Crítica da faculdade do juízo de Kant deixa-se ler como uma investigação das condições de possibilidade da biologia, embora de modo algum se reduza a isto. Quanto a esse ponto Kant concebe que o que deve ser fundamentalmente respondido é “que lugar cabe à teleologia? Será que pertence à (propriamente assim designada) ciência da natureza ou à teologia?” (Kant, 1995b, p. 257). A resposta de Kant para a segunda pergunta é incisiva: “Que ela não pertence à teologia como uma parte da mesma, ainda que naquela possa ser feito o mais importante uso da teleologia, está claro [porque] a teleologia tem como seu objeto produtos da natureza”. Do mesmo modo, “tampouco ela parece pertencer também à ciência da natureza, a qual exige princípios determinantes e não simplesmente reflexivos para FUNDAMENTO V. 1, N. 1 - SET.-DEZ. 2010 indicar fundamentos objetivos de efeitos da natureza” (Kant, 1995b, pp. 257-258). E é na segunda parte dessa resposta que se encontra também a resposta para a primeira questão, a qual objetiva definir propriamente um lugar para a teleologia na consideração dos fenômenos biológicos que não seja nem a consideração mecânica da ciência da natureza (física) e nem também a consideração criacionista da teologia natural.

O lugar que cabe à teleologia na consideração dos fenômenos biológicos se deve, segundo Kant, à própria consideração da especificidade destes fenômenos. Kant garante que na consideração de fenômenos físicos são sempre dadas as categorias a priori que regem a sua determinação e que são estabelecidas como leis das quais o cientista deve partir para compreender a mesma determinação. Na consideração dos fenômenos biológicos tais leis não garantem a compreensão da sua organização. Se no primeiro caso são sempre dados conceitos universais que podem ser subsumidos a casos particulares, no caso de um ser auto-organizado não se pode partir de um conceito geral para a sua determinação. Ou seja, “existem tantas formas múltiplas da natureza, como se fossem tantas modificações dos conceitos da natureza universais e transcendentais, que serão deixadas indeterminadas por aquelas leis dadas a priori pelo entendimento puro” (Kant, 1995b, pp. 23-24). A compreensão desta “multiplicidade” só seria possível mediante um princípio que é “objetivamente

contingente” do ponto de vista de qualquer consideração mecanicista

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da natureza, mas que é “subjetivamente necessário” do ponto de vista da garantia da diversidade e da estrutura dos organismos vivos (Kant, 1995a, p. 81). Este princípio é a “conformidade a fins da natureza” e, enquanto um princípio da faculdade do juízo reflexionante, não é “retirado” constitutivamente de outro lugar (como da teologia ou da física) e nem também “prescreve” constitutivamente uma determinação à natureza, mas serve somente para que se possa compreender a sua diversidade orgânica, a qual não poderia ser considerada quer por um viés mecanicista quer por um viés criacionista (Kant, 1995b, p.24):

Assim, por exemplo, ao se dizer que a lente cristalina, no olho, tem o fim de, por uma segunda refração dos raios luminosos, efetuar novamente a unificação daqueles    que    emanam de um ponto,

em um ponto sobre a retina do olho, é dito apenas que a representação de um fim na causalidade da natureza ao produzir o olho é pensada, porque tal idéia serve de princípio para com isso guiar a investigação do olho, no que diz respeito à parte citada do mesmo, assim como, igualmente, pelos meios que se poderiam cogitar para suscitar aquele efeito. (Kant, 1995a, p.73).

Ora, ao conceber que os fenômenos biológicos não podem ser nem reduzidos a uma explicação mecanicista e nem também explicados teologicamente, mas que os mesmos são apenas compreensíveis mediante o princípio de “conformidade a fins da

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natureza”, Kant parece ter sido o precursor da defesa da “autonomia” da biologia em relação à física e à teologia. Mas, se o problema fundamental da filosofia da biologia consiste na consideração da problemática do reducionismo das ciências da vida (Cf. Caponi, 2004, p. 120), é necessário também ter presente que esta garantia depende, na biologia pós-darwiniana, da justificação do modo em que esta “conformidade a fins” deve ser compreendida tanto num sentido de uma “teleologia intra-orgânica” bem como de uma “teologia da adaptação”, sendo estes conceitos chaves para a justificação da auto-suficiência dos dois domínios da biologia, i.e., biologia funcional e biologia evolutiva. A apresentação destes dois modos de teleologia, a partir da distinção entre biologia funcional e biologia evolutiva, será objeto de consideração da próxima seção deste trabalho.

ii - A noção de teleologia depois de Darwin e a justificação da auto-suficiência da biologia funcional e da biologia e evolutiva

Nas primeiras palavras do conhecido The Blind Watchmaker de Richard Dawkins lê-se: “Escrevi este livro na convicção de que nossa existência já foi o maior de todos os mistérios, mas deixou de sê-lo. Darwin e Wallace o desvendaram, embora durante algum tempo ainda devamos continuar a acrescentar notas de rodapé à sua solução” (Dawkins, 1986, p. 9). Nesta obra, assim como em diversas outras, Dawkins apresenta uma defesa da teoria da evolução em contrapartida à visão criacionista dos fenômenos biológicos. O próprio título do FUNDAMENTO V. 1, N. 1 - SET.-DEZ. 2010 livro, segundo Dawkins, é concebido a partir de Paley, autor reconhecido por retomar a teologia natural na Inglaterra no início do século XIX. Como o próprio Dawkins considera (Cf. 1986, pp. 21-23), Paley também pensa os fenômenos biológicos em analogia com a criação de um relógio. Contudo, enquanto teólogo natural - e não cientista físico - Paley pensa os fenômenos biológicos não como regidos por leis gerais da mecânica, mas como produtos organizados que não devem a sua origem às mesmas leis. A analogia com o relógio serve para mostrar que, assim como este precisa de um relojoeiro, os fenômenos biológicos também precisam ser pensados a partir da criação por um artífice supremo. Dawkins tem por tese que o argumento de Paley, embora apresentando uma enorme contribuição no que tange a descrição das estruturas anatômicas e fisiológicas dos seres vivos, é incorreto porque ao passo que um “verdadeiro relojoeiro possui antevisão [... ] [a] seleção natural, o processo cego, inconsciente e automático que Darwin descobriu e que agora sabemos ser a explicação para a existência e para a forma aparentemente premeditada de todos os seres vivos [...], [se] desempenha o papel do relojoeiro da natureza, é o papel do relojoeiro cego” (Dawkins, 1986, pp. 23-24).

Dawkins credita o “mistério desvendado” por Darwin ao fato de que a seleção natural permite uma explicação dos fenômenos biológicos não reduzida a uma visão mecanicista e nem também

recorrente a uma visão criacionista. Caberia aqui perguntar se esse

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mérito não poderia ser atribuído já a Kant. Conforme objetivou-se mostrar na seção anterior, já em Kant é encontrada a concepção de que seres auto-organizados podem e devem ser explicados mediante o “princípio de conformidade a fins da natureza”, um princípio que não pode ser buscado nem na teologia e nem na ciência natural. Todavia, é imperativo ter presente aqui que, se o mérito de Kant está no fato deste autor garantir que a consideração da estrutura de organismos individuais se deve a um principio que não é buscado na física ou na teologia, Darwin pensa na possibilidade de considerar este princípio em “um plano irredutivelmente coletivo” (Caponi, 2005, p. 235), um plano no qual “a relação biológica fundamental é a relação entre o vivente e outros viventes” (Canguilhem apud Caponi, 2006, p. 30). Como estabelecer a noção de teleologia neste plano que não se reduz à consideração interna do organismo ou do meio a partir da mesma, mas no qual é necessário considerar o mecanismo que rege a relação dos organismos, é o que antes de Darwin permaneceu como “o maior de todos os mistérios” na biologia. Em uma palavra, se Kant vê a necessidade de tirar a teleologia das garras da física e da teologia no plano do organismo individual, Darwin vê como mandatório que isso aconteça também no “plano coletivo” da relação destes organismos.

É possível dizer, então, que, se a seleção natural apresenta-se como o elemento revelador do “mistério” da nossa existência, a sua importância esta fundamentalmente ligada ao modo em que a

teleologia é pensada depois de Darwin e, com isso, na própria

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especificação de dois domínios para a biologia. Quer dizer, a originalidade do pensamento de Darwin em relação a qualquer outro pensador precedente está no fato de que este pensamento permite que seja edificada a própria estrutura da biologia contemporânea enquanto biologia funcional e biologia evolutiva. A justificação da biologia contemporânea em dois domínios de investigação notadamente distintos e auto-suficientes se deve, assim, ao fato de que com a teoria da seleção natural foi possível compreender que há dois modos de teleologia diferentes que imperam em cada um destes domínios.

Ao refletir sobre a estrutura da biologia contemporânea Mayr sustenta que “a palavra biologia é uma etiqueta para dois campos muito separados que diferem enormemente em metodologia, Fragestellung [questão], e conceitos básicos” (1998b, p. 83). O esclarecimento da diferença entre essas “duas áreas muito diferentes, que podem ser chamadas biologia funcional e biologia evolutiva” é o pré-requisito fundamental para a compreensão da noção de teologia na biologia contemporânea.

Os conceitos básicos da biologia funcional, segundo Mayr, são as causas próximas que visam a descrição do funcionamento e da constituição de organismos individuais. Isso porque a “biologia funcional está relacionada com a operação e interação de elementos estruturais, desde moléculas até órgãos e indivíduos completos” FUNDAMENTO V. 1, N. 1 - SET.-DEZ. 2010 (Mayr, 1998b, p.83). Desse modo, as causas próximas, na medida em que tratam da decodificação do programa de um organismo determinado, “governam as respostas dos indivíduos (e seus órgãos) a fatores imediatos do ambiente” (Mayr, 1998b, p. 86). Como conseqüência, frente a um fenômeno biológico a questão que o biólogo funcional procura sempre responder é “Como?”, “Como se dirige o seu funcionamento?” (Caponi, 2001, p. 24; Mayr, 1998 a, p. 89; 1998b, p. 83; Jacob, 1981, p. 60). Por fim, o método visto como mais apropriado pelo biólogo funcional para responder a questão acerca do funcionamento de um organismo particular é o método experimental. Ou seja, “[o] biólogo funcional procura isolar o componente particular sob exame e, em qualquer estudo determinado, normalmente lida com um único indivíduo [...] e repete suas experiências sob condições constantes e variáveis até que acredite ter esclarecido a função do elemento que está estudando” (Mayr, 1998a, p. 89; 1998b, p. 83).

Já os conceitos básicos da biologia evolutiva são as causas últimas ou remotas. Quer dizer, “encontrar as causas das características atuais dos organismos, e particularmente das suas adaptações, constitui a preocupação principal do biólogo evolucionista” (Mayr, 1998a, p. 90). Desse modo, o biólogo evolucionista “estuda os passos pelos quais as adaptações milagrosas tão características do mundo orgânico foram evoluindo”, sendo que para tal tem sempre presente que um “organismo, como um indivíduo

e como membro de uma espécie, é o produto de uma larga história,

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uma história que remonta a mais de 3 000 milhões de anos” (Mayr, 1998b, p. 84). A questão a ser respondida no domínio da biologia evolutiva para um fenômeno biológico é “Por quê?” ou “Qual a sua origem?” (Caponi, 2001, p. 24; Mayr, 1998a, p. 93; 1998b, p. 84; Jacob, 1981, p. 60). E, para responder a tal tipo de questão, o biólogo evolucionista segue essencialmente o método comparativo. Isto é, “[n]a biologia evolutiva, quase todos os fenômenos e processos são explicados por inferências, baseadas em estudos comparativos” (Mayr, 1998a, p. 90). O biólogo evolucionista precisamente concebe “a legitimidade do método observacional-comparativo, tendo em conta que o método experimental é inaplicável em muitos problemas científicos” (Mayr, 1998a, p. 48). E estes problemas são todos aqueles que dizem respeito às diversas adaptações em determinadas populações.

Como exemplo da diferença entre os domínios distintos de investigação da biologia funcional e da biologia evolutiva pode-se aludir ao dimorfismo sexual. O biólogo funcional, mediante um método experimental, buscaria responder a questão de “como” esse fenômeno ocorre e poderia apresentar fatores hormonais ou mesmo um determinado desenvolvimento genético do indivíduo como sendo a sua causa próxima. De modo diferente, o biólogo evolucionista, através de um método comparativo, buscaria responder a questão acerca “origem” do mesmo fenômeno ou do “por quê” da sua

ocorrência e poderia apresentar como sua causa última ou remota “a

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seleção natural ou uma vantagem seletiva de utilização diferenciada das condições de alimentação” (Mayr, 1998a, p. 88), que seria procedente de diversas adaptações em nível populacional.

Estando definido os conceitos básicos, a questão a ser respondida e, também, o método a ser empregado em cada um dos domínios da biologia contemporânea, é se é possível agora também justificar a diferença e a originalidade na consideração da noção de teleologia depois da teoria da seleção natural de Darwin.

Ora, na biologia pré-darwiniana é possível cunhar ou mesmo encontrar explicitamente em diversos autores a distinção entre uma teleologia interna e uma teleologia externa. É assim que, já na filosofia grega, pode-se “fazer uma distinção entre uma teleologia platônica ou ‘externa’ e uma teleologia aristotélica ou ‘interna’” (Mclaughlin, 2001, p.16). Kant dedica todo o § 63 da Crítica da faculdade do juízo à explicação da ”diferença” entre uma “conformidade a fins interna” e uma “conformidade a fins externa” dos seres auto-organizados. Do mesmo modo, Cuvier também alude explicitamente a duas formas de teleologia que compreendem à necessidade de que “as diferentes partes de cada ser devem estar coordenadas de maneira que tornem possível o ser total, não somente em si próprio, mas também com relação àqueles seres que o circundam” (Cuvier apud Caponi, 2003, p. 27). Não poderia, então, ser cunhada antes de Darwin a distinção

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entre uma biologia funcional regida por uma teleologia intra-orgânica e uma biologia evolutiva regida por uma teleologia da adaptação?

A falsidade da relação dos pares teleologia interna e teleologia externa na biologia pré-darwiniana com os pares teleologia intra-orgânica e teleologia da adaptação na biologia pós-darwiniana é o primeiro ponto que deve ser considerado em uma resposta à referida questão. Isso porque na biologia pré-darwiniana ou (i) considera-se a teleologia externa a partir de um elemento exterior determinado teologicamente - desde o demiurgo de Platão até o relojoeiro dos cientistas físicos modernos e o artífice supremo dos teólogos naturais - que modifica a estrutura do organismo individual ou (ii) considera-se a teleologia externa unicamente a partir do plano do organismo individual - a “conformidade a fins externa” de Kant, que é hipoteticamente pensada a partir da “conformidade a fins interna” e as “condições de existência” de Cuvier, que são sempre pensadas como condições de possibilidade do próprio organismo individual (sobre Cuvier Cf. Caponi, 2003, p.29). A impossibilidade de estabelecer um princípio de conformidade a fins no plano coletivo da relação dos organismos a partir da teologia e também a necessidade imperativa de explicar a “lógica própria” deste plano são os motivos fundamentais que levam Darwin a pensar a teleologia num sentido muito diferente dos seus predecessores.

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A partir da teria da seleção natural de Darwin foi possível garantir em biologia uma consideração da teologia tanto no plano do organismo individual da biologia funcional como no plano populacional da biologia evolutiva. Ou seja, depois de Darwin estabeleceu-se a necessidade de justificar de outro modo - e de um modo que pudesse dar conta da adaptação entre o meio o organismo -aquele teleologia externa que na biologia pré-darwiniana ou era objeto da teologia ou era pensada apenas a partir do organismo individual. Assim, considera-se que a teleologia na biologia pós-darwiniana apresenta-se “cindida em duas ordens de fenômenos diferentes” (Caponi, 2003, p.28): uma ordem “intra-orgânica” e uma ordem “inter-orgânica” (Jacob apud Caponi, 2003, p.37 ).

No domínio da biologia funcional a teleologia intra-orgânica é compreendida como teleologia “determinada ou necessária”, sendo esta a que ocorre “quando se alcança um estado final específico apesar das flutuações ambientais”. (Ayala apud Caponi, 2002, p. 62). O “princípio de conformidade a fins da natureza” assim concebido deve ser justificado enquanto “princípio de função” ou “princípio de adequação autopoiética” (Caponi, 2001, p.41; 2002, p. 59). Quer dizer, no domínio das causas próximas deve ser empreendida uma explicação tal que sirva de resposta a uma indagação acerca do processo de auto-organização pelo qual o organismo se constitui e preserva a sua forma individual, processo este denominado

“autopoiesis” (Cf. Maturana e Varela apud Caponi, 2002, p.68). E é

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precisamente no domínio da biologia funcional, compreendida como uma “ciência da autopoiesis orgânica” (Caponi, 2002, p.68), que devem ser situadas as investigações de Claulde Bernard acerca da teleologia interna na fisiologia e, mesmo, de Kant e Cuvier, autores que aludem a uma teleologia externa, mas que pensam esta teleologia apenas a partir do plano do organismo individual.

No domínio da biologia evolutiva, por sua vez, a teleologia inter-orgânica, ou da adaptação do organismo com o meio, é vista como uma teleologia “indeterminada ou inespecífica” e acontece “quando o estado final ao qual se tende não está predeterminado especificamente, mas é propriamente o resultado da seleção de uma das diversas opções existentes” (Ayala apud Caponi, 2002, p. 62). Isso significa que no domínio das causas últimas ou remotas o princípio de “conformidade a fins da natureza” deve ser justificado como um “princípio de adaptação” ou “princípio de adequação adaptativa” (Caponi, 2001, p.41; Caponi, 2002, p. 59). Neste caso, vale considerar que “[a] realização verdadeiramente notável da seleção natural é que ela torna desnecessária a invocação de ‘causas finais’ - ou seja, qualquer força teleológica conduzindo a um fim particular” (Mayr, 1999, p.2). Quer dizer, a consideração da teleologia em Darwin, sendo situada no domínio da biologia evolutiva, não segue uma relação de causa-efeito determinada, mas sim de custo-benefício, segundo a qual uma coisa está onde está ou porque há mais benefícios na sua

presença do que na sua ausência ou porque esta última implica mais

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custos do que a primeira (Cf. Caponi, 2004, p. 149). Este noção darwiniana de teleologia, entendida enquanto uma explicação selecional, é garantida não a partir do atendimento ao funcionamento e à estrutura do organismo individual, mas sim mediante a consideração das variantes históricas e evolutivas que compreendem a adequação dos organismos ao meio em nível populacional.

Então, se levada a sério a assertiva de que “[a]s duas biologias, decorrentes de dois tipos de causalidade, são marcadamente auto-suficientes” (Mayr, 1998a, p. 88), é preciso ter presente que esta auto-suficiência se deve fundamentalmente à possibilidade, instituída pela teoria da seleção natural de Darwin, de considerar cientificamente os fenômenos biológicos num domínio que antes era visto como não passível de consideração ou como explicado apenas pelo viés da teologia. Isso não significa que a legitimidade de uma teleologia “indeterminada ou inespecífica” no domínio da biologia evolutiva implique o abandono ou a desconsideração de uma teleologia “necessária ou específica” no domínio da biologia funcional. Muito pelo contrário, o que Darwin parece ter garantido é uma inversão na primazia dessas teleologias que assegura precisamente a auto-suficiência e a legitimidade de ambos os domínios da biologia contemporânea. O modo de vida e as exigências do meio, garantidas pelas diversas adaptações em nível populacional, compreende a “razão de ser” da estrutura interna do organismo e, esta por sua vez, é a única

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“razão de conhecer” da teleologia que impera no seu domínio individual.

Conclusão

Este trabalho teve por propósito mostrar que, longe de haver uma contradição imediata entre as considerações sobre a teleologia na biologia pré-darwiniana e as considerações acerca da teleologia na biologia contemporânea, a diferença destas considerações esta pautada por uma perspectiva metodológica fundamentalmente distinta. Ao passo que na biologia pré-darwiniana o foco da atenção é o organismo e mesmo a relação com o meio é justificada a partir da sua estrutura individual, na biologia pós-darwiniana surge a possibilidade de atender às populações enquanto objetos seminais de investigação. A precisão das investigações filosóficas acerca da biologia reside justamente na legitimação da auto-suficiência dessas duas noções de teologia imperantes em cada um dos seus domínios e não na tentativa de reduzir um domínio ao outro ou, ainda, estabelecer uma síntese mais elevada entre eles. Tal empreendimento é garantido sucessiva e conjuntamente por Kant e Darwin.

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A FILOSOFIA PRÁTICA DE KANT: DEONTOLOGIA E TELEOLOGIA

A FILOSOFIA PRÁTICA DE KANT: DEONTOLOGIA E TELEOLOGIA

REVISTA CIENTÍFICA DA UFPA - EDIÇÃO N° 03, MARÇO, 2002

A FILOSOFIA PRÁTICA DE KANT: DEONTOLOGIA E TELEOLOGIA

Kézia Pimentel Magalhães (kezinha@hotmail.com)

Bolsista PIBIC/CNPq, Departamento de Filosofia, Centro de Ciências Humanas, Universidade

Federal do Pará.

Profa. Dr3. Ângela Maroja (amaroja@nautilus.com.br)

Departamento de Filosofia, Centro de Ciências Humanas, Universidade Federal do Pará.

ABSTRACT

In contemporary philosophy, the deontological character of the kantian practical philosophy is taken as something unquestionable. Thus, through the kantian concept of highest good, one can reflect on the possibility of an effectively deontological moral, as Kant’s to be able to hold a concern with the happiness and, therefore, a certain conception of good. Thus, our analysis consisted in investigating how, effectively, established ethical principles in a deontological horizon is opposed to principles of teleologic character, or if we can conceived both as complementary practical perspectives.

1. INTRODUÇÃO

Comumente entendemos, o registro prático da filosofia kantiana como dominada por uma perspectiva deontológica, no sentido em que ela privilegia, entre as propriedades da interação interpessoal, a conformidade a certas normas de caráter obrigatório e universal, onde a idéia de respeito recíproco assume um valor intrínseco, revestindo-se da dignidade de um dever moral a ser cumprido. Desse modo, e como conseqüência, a ética kantiana parece distinguir-se de outras concepções (de caráter teleológico), cujos princípios repousariam principalmente na avaliação de modos de agir e condutas que se conformam a um determinado fim a ser alcançado e tido como um bem, seja ele a felicidade, a excelência humana ou mesmo o prazer. Aqui, é concedida uma prioridade ao conceito de bem, prioridade que estaria ausente na perspectiva deontológica, onde é conferida uma prioridade do justo sobre qualquer outro bem.

Em nossa pesquisa confirmamos tais pressupostos através das seguintes etapas. Num primeiro momento, seguindo P. Ricoeur, assumimos a ética aristotélica como o melhor exemplo de uma perspectiva teleológica. Depois, para caracterizar a perspectiva deontológica, assumimos, sem discutir, mas em caráter provisório (seguindo ainda P. Ricoeur) a moral kantiana como o modelo deste último ponto de vista. Aqui, tornou-se necessário aprofundarmos o conceito kantiano de liberdade, uma vez que (e isso caracterizando o segundo e conclusivo momento da pesquisa) tal conceito mostrou-se indispensável para finalmente, mediante a problematização do conceito kantiano de soberano bem, discutirmos até que ponto a filosofia moral de Kant pode comportar uma concepção de bem.

2.    METODOLOGIA

Os procedimentos metodológicos seguidos nessa atividade de pesquisa obedecem às regras que são próprias da investigação filosófica. Isso significa que se trata de uma pesquisa eminentemente bibliográfica, que foi desenvolvida a partir da identificação, leitura, análise e interpretação de fontes bibliográficas, sobretudo fontes primárias como: a Ética a Nicômaco e a Política de Aristóteles; A religião nos limites da simples razão, a Crítica da razão Pura, a Crítica da Razão Prática, a Fundamentação da Metafísica dos Costumes e a Metafísica dos Costumes de Kant; Uma investigação sobre os princípios da moral e os Ensaios morais, políticos e literários de Hume e etc.

3.    RESULTADOS

Tomando como ponto de partida a teoria moral aristotélica, tornou-se inevitável notarmos, com Roger Sullivan, que a moral, em Aristóteles, se iniciaria na Ética a Nicômaco com uma "revelação moral do individual” e somente na Política estender-se-ia para uma ordem pública (An Introduction to Kant's Ethics, p.1) . Verificamos que a problemática do individual e do público acaba por culminar na primazia, estabelecida por Aristóteles, do interesse comum sobre o interesse individual, primazia que consideramos importante analisar, até porque, Gadamer, em seu livro Verdade e Método, chama-nos atenção para a superioridade da ética antiga sobre a filosofia moral da idade moderna observando que a primeira possibilita a "passagem da ética à política”, graças ao seu enraizamento na tradição, ou seja, na história (Verdade e Método, p.421).

Por outro lado, segundo Tugendhat, muitos comentadores e críticos de Aristóteles acabam por considerar a Ética a Nicômaco uma espécie de tratado sobre a felicidade, pois o fim último das ações visaria a felicidade, colocando em questão se as virtudes, citadas na referida obra, são de fato, virtudes morais, ou virtudes de felicidade (Lições sobre ética, 13alição, p.269). Dada a importância que a felicidade assume dentro da ética aristotélica, consideramos que seria estratégico investigarmos, paralelamente a esta análise, o utilitarismo de David Hume, de Jeremy Betham e de John Stuart Mill também com ela preocupados.

Assim, segundo David Hume, "o objetivo fundamental de todo o esforço humano é alcançar a felicidade” (Ensaios morais, políticos e literários, p. 211). Jeremy Bentham parece reforçar e complementar esta idéia de Hume quando diz que "a natureza colocou o gênero humano sob o domínio de dois senhores soberanos: a dor e o prazer”. Bentham continua, declarando que somente a eles compete apontar o que devemos fazer, bem como determinar o que na realidade faremos... o princípio da utilidade reconhece esta sujeição e a coloca como fundamento desse sistema, cujo objetivo consiste em construir o edifício da felicidade...” (Uma introdução aos princípios da moral e da legislação, cap.I, p.3). Observamos com John Stuart Mil que, de acordo com a opinião utilitarista, a finalidade da ação humana é a felicidade, a qual também define o padrão de moralidade almejado. Mill acrescenta, ainda, que o modelo utilitarista de moral não visa "... a maior felicidade do próprio agente, mas a maior soma de felicidade conjunta” (Utilitarismo, cap.II, p.194). Ora, Aristóteles entende por "...cidade melhor governada aquela em que o regime promove a felicidade no maior grau possível...” (Política, livro VII, cap. 13, p.529), o que implicaria dizer que o melhor regime é aquele que visa o interesse comum (fins coletivos), identificando este com a felicidade política. Assim, "...os regimes que se propõem atingir o interesse comum são retos... os que apenas atendem aos interesses dos governantes são defeituosos...” (Idem, livro III, cap.7, p.211). Portanto, poderíamos, num esforço argumentativo, concluir que Aristóteles pode ter servido de fonte para algumas teorias utilitaristas modernas e contemporâneas também centradas na preocupação com a felicidade.

Em algumas passagens da Política e da Ética a Nicômaco, pudemos observar que o próprio Aristóteles parece enquadrar sua ética no utilitarismo. Assim, por exemplo, quando ele reconhece (na Política) que, "apesar de não carecer de auxílio mútuo, os homens desejam viver em conjunto; também é verdade que estão unidos pela utilidade comum, na medida em que, a cada um, corresponde uma parcela de bemestar” (Ibidem, livro III, cap.6, p.207).

Poderíamos então dizer que o bem agir em Aristóteles tem um valor simplesmente instrumental em relação ao bem-estar e à felicidade comum dos homens. Nesse sentido, a perspectiva prática kantiana, contrariamente à teleologia de cunho utilitarista, poderia ser tachada, enquanto deontológica, de anti-utilitarista. Poderíamos citar como exemplo do antiutilitarismo de Kant, uma passagem da primeira seção da Fundamentação da Metafísica dos Costumes onde ele observa, fazendo um pequeno comentário sobre o valor absoluto da vontade, que "a utilidade e a inutilidade nada podem acrescentar ou tirar a este valor” (Fundamentação da Metafísica dos Costumes, 1a seção, p.206). Na Analítica da Segunda Crítica Kant parece reforçar seu anti-utilitarismo. Diz ele que a "...razão prática... abandona a vantagem, une-se ao que lhe conserva o respeito pela sua própria pessoa...” (Crítica da Razão Prática, Analítica da Razão Pura Prática, cap. III, p. 108).

Concordando com o anti-utilitarismo e tomando como base a teoria moral de Kant, Rawls nos apresenta em seu livro Uma Teoria da Justiça, uma proposta contratualista que serviria como uma alternativa ao utilitarismo, destacando, sobretudo, sua concepção de justiça como eqüidade. Aqui, Rawls define seu próprio ponto de vista (de raízes kantianas) contrapondo-se ao utilitarismo que "... é uma teoria teleológica ao passo que a justiça como equidade não o é. Por definição, portanto, a segunda é uma teoria deontológica, que ou não especifica o bem independentemente do justo, ou não interpreta o justo como maximizador do bem” (Uma Teoria da Justiça, cap.I, § 6, p.32).

O que Rawls mais critica na visão utilitarista é que nela não importa, exceto indiretamente, o modo como a soma de satisfações (que nos referimos a pouco) se distribui entre os indivíduos. Assim como não importa, exceto indiretamente, o modo como o homem distribui suas satisfações ao longo do tempo. A distribuição correta nesta visão é aquela que permite a máxima realização, o grau máximo de felicidade (Idem, cap.I, § 5, p.27). Talvez tenha sido este motivo que levou Rawls a identificar, neste mesmo trecho, a teoria moral e política aristotélica com o perfeccionismo, teoria teleológica onde o bem é tomado como a realização da excelência humana nas diversas formas de cultura.

Como bem observou Tugendhat, a verdade é que em Aristóteles "só pode ser bom aquele que é orientado para o bem em seus afetos... em suas inclinações” (Lições sobre ética, sexta lição, p.126). Este caráter de afetividade da moral aristotélica iria de encontro com algumas formulações rigoristas de Kant onde a moralidade exclui inclinações e desejos. Em outros termos, não há em Aristóteles um "efeito de constrangimento”, efeito que, segundo P. Ricoeur, estaria indissociavelmente ligado à idéia de universalidade (O si mesmo como um outro, oitavo estudo, p.241) e ambos, o efeito de constrangimento e a validade universal das normas, estando relacionados com uma perspectiva deontológica. Em Aristóteles, não há nenhuma lei que determine a vontade independentemente das inclinações e o fim (felicidade), identificado na Ética a Nicômaco com o bem-viver, não é entendido separadamente dessas inclinações, já que seria "...um fim ao qual visa o desejo” (Ética a Nicômaco, livro VI, cap.2, p.342). Logo, não poderíamos dizer que o sistema ético aristotélico comportaria um fim tomado como um dever, posto que um fim, assim entendido, estaria indissociavelmente ligado a um caráter moral obrigatório. Como pudemos observar, na Política, Aristóteles fala que "... a vida preferível será necessariamente a mesma tanto para cada indivíduo em particular, como para as cidades e os homens tomados em comum” (Política, livro VII, cap.3, p.493). Este caráter da ética centrado no que é preferível parece ilustrar perfeitamente essa ausência de um caráter obrigatório (traduzido pela lei moral). Ora, sobre a possibilidade de escolher um modo de vida preferível, é necessário notarmos que uma perspectiva deontológica jamais admitiria preferências, exigindo, ao contrário, uma vida em respeito ao dever. Pudemos desta forma concluir que, no que diz respeito ao enraizamento da virtude moral aristotélica no desejo, contradizendo a determinação pura da vontade na moral kantiana, as virtudes, em Aristóteles, teriam um caráter propriamente teleológico e não deontológico. Isto posto, podemos, contudo, conceder com Tugendhat que o fato da virtude, em Aristóteles, depender dos costumes de uma sociedade (virtudes sociais) e não se mostrarem como exigências morais universais, isto não implica dizer que a virtude em Aristóteles seria contrária a tal exigência (Lições sobre ética, 13a lição, p.277).

Os traços acima destacados permitiram-nos caracterizar Aristóteles como o grande representante da teleologia. Nesse sentido, poderíamos ainda enfatizar o caráter efetivo de sua ética (onde os preceitos para o bem agir são definidos em cada circunstância particular) por oposição ao apriorismo universalista da moral kantiana. O valor dado à sabedoria prática - phronesis (enquanto norma moral situada em um contexto particular) e, sobretudo, a primazia do conceito de bem em relação ao de justiça, confirmam o enquadramento da teoria moral aristotélica em um horizonte teleológico. Entretanto, a despeito da preeminência que o conceito de bem adquire no horizonte ético teleológico, isto não quer dizer que Aristóteles ficou indiferente ao papel da justiça em relação à organização da vida pública na cidade, no sentido de considerar textualmente que o desvio da mesma poderia levar à dissolução dos regimes (Política, livro I, cap.13, p. 93).

Feita a análise da ética aristotélica, achamos necessário fazer um pequeno esclarecimento sobre o conceito de liberdade, antes de analisarmos o nosso tema central, até porque, o próprio Kant considera que "prático é tudo aquilo que é possível pela liberdade” (Crítica da Razão Pura, Doutrina Transcendental do Método, cap. II, laseção, p. 636 - A800/B828). Henry Allison, comentando Lewis Beck, afirma que Kant nos apresenta diferentes concepções de liberdade, e vai tratar este conceito de inúmeras formas. Por isso, partimos da Primeira Crítica, onde analisamos, sobretudo, a Terceira Antinomia, a terceira parte da nona seção do cap. II do segundo livro da Dialética Transcendental e o Cânon da Doutrina Transcendental do Método, antes de nos determos na Dialética da Segunda Crítica.

A despeito da diferença de tratamento que Kant dá à liberdade em diferentes momentos de suas obras, utilizando vários comentadores como Allison, Beck, Gadamer, Nancy, Ricoeur, Sullivan e Tugendhat vimos que o problema em questão consiste, grosso modo, na tentativa de fazer com que a liberdade possa não apenas ser possível (pensável sem contradição) mas lhe atribuir uma realidade objetiva. Somente na Analítica da Critica da Razão Prática, Kant parece alcançar este objetivo, onde através da lei moral a liberdade, sem necessitar de um tratamento empírico, tal como no Cânon, torna-se real. Assim, Ricoeur nos diz que a liberdade prática conteria, então, dois traços poder e realidade objetiva (O conflito das interpretações, cap.V, p.408). A importância de atribuir realidade objetiva à liberdade prática se justifica, em Kant, pela necessidade prática de nós pensarmos nossa existência em um mundo efetivamente moral.

Sobre nossa análise a respeito do conceito de soberano bem, nosso trabalho consistiu em mostrar que aquilo que a Analítica da Crítica da Razão Prática separou em termos rigoristas, como oposto e irreconsiliável, isto é a preocupação com a felicidade e a realização de nossos deveres morais, a Dialética da mesma crítica vai unir. Graças à exigência de totalidade que lhe é própria, a Dialética da Razão Pura Prática vai, então, conectar moralidade e felicidade, concedendo, contudo, uma primazia da primeira sobre a segunda. Dada a preeminência da moralidade sobre a felicidade, esta última não vai ser posta pelo soberano bem segundo fundamentos prudenciais e sim deontológicos, tornando-se, por isso mesmo, o conceito de dignidade de ser feliz. Esta última noção é de suma importância dentro do sistema moral kantiano, pois para que a felicidade possa se revestir da dignidade é preciso que haja respeito recíproco entre os homens, noção implícita no conceito de humanidade (expresso na segunda formulação da lei moral, e que faz dela, ao nosso ver, a formulação mais importante).

Assim, a humanidade destacaria o valor moral intrínsico que reside em cada um de nós (Fundamentação da Metafísica dos Costumes, 2a seção, p.229).

É importante enfatizar que, apesar do soberano bem se configurar, na filosofia prática kantiana, como "... o fim supremo necessário de uma vontade moralmente determinada” e sabermos que "no soberano bem... a virtude e a felicidade são pensadas como necessariamente unidas” (Crítica da Razão Prática, cap.II da Dialética da Razão Pura Prática, p. 132 e 134), a virtude (condição suprema) é tratada aqui não como phronesis, como seria em Aristóteles, mas como mérito de ser feliz ( conformidade das intenções à lei moral).

Desta forma, a teoria moral kantiana jamais pode ser considerada uma teoria da felicidade, como Tugendhat sugere que o foi a ética Aristotélica. É necessário lembrarmos que para Kant, "a felicidade, isoladamente, está longe de ser para a nossa razão o bem perfeito. A razão não a aprova (por mais que a inclinação a possa desejar) se não estiver ligada com o mérito de ser feliz, isto é, com a boa conduta moral” (Crítica da Razão Pura, Doutrina Transcendental do Método, cap. II, 2a seção, p. 644 - A813/B841). Desta forma, a boa conduta moral consistiria na independência relativamente à inclinação que, segundo Kant, é "cega e servil”, e mesmo que seja de boa qualidade (conforme ao dever), como por exemplo a beneficência, a respectiva ação conterá legalidade, mas não moralidade. Tanto na Fundamentação da Metafísica dos Costumes quanto na Segunda Crítica, Kant observa que a beneficência estaria ligada à busca de honra e de felicidade. E, na verdade, aqueles que praticam uma ação deste gênero costumam utilizar a figura do outro como meio para alcançar algum mérito. O ato de tomar o outro como simples meio iria de encontro com o que nos prescreve a segunda formulação da lei moral, a saber: "age de tal maneira que uses a humanidade, tanto na tua pessoa como na pessoa do outro, sempre simultaneamente como fim e nunca como meio” (Fundamentação da Metafísica dos Costumes, 2a seção, p.229). Na Religião, Kant parece admitir somente dois tipos de motivação, a saber, ou as máximas são motivadas pelo amor-de-si (egoísmo) ou pela moralidade, a benevolência permanecendo parte constituinte daquele primeiro tipo de motivação (A religião nos limites da simples razão,nota n°7 da Primeira Parte, p.51).

Apesar de Kant não nos dar, no decorrer de suas obras, muitas alternativas para entendermos a beneficência de uma forma menos radical, em sua obra Kant on Freedom, Law and Happiness recentemente publicada Paul Guyer interpreta o quarto exemplo kantiano da beneficência de modo não-rigorista. Segundo Guyer, este último seria a base para a reivindicação de que a lei moral não exige somente que nós reconheçamos constrangimentos legais sobre a busca individual da felicidade, mas que nós efetivamente devemos buscar a felicidade de todos dentro desses constran5gimentos. Paul Guyer observa, ainda, que este dever de benevolência vai ser particularmente clarificado na Doutrina da Virtude da Metafísica dos Costumes onde ele parece dar lugar a um dever verdadeiramente universal de benevolência mútua (conforme o princípio de igualdade). Desta forma, o exercício da benevolência universal, incluiria a idéia de humanidade (expressa na segunda formulação da lei moral) e seria o dever final comandado por esta mesma lei (Kant on Freedom, Law, and Happiness, cap.10, p.341-342). Com a interpretação de Guyer podemos ter uma visão menos rigorista a respeito da beneficência, na qual seria possível também concebermos a felicidade como parte da própria virtude moral, uma vez que, ao nos ajudarmos mutuamente estaríamos, talvez, contribuindo para nos tornarmos mais felizes.

A despeito de como a benevolência pode ser entendida no sistema moral kantiano, se estamos aqui admitindo, através do conceito de soberano bem, que um sistema deontológico pode incorporar uma concepção de bem, se faz necessário entendermos que esta concepção de bem não vai ter as mesmas características de uma concepção de bem teleológica. Como nos diz Lewis Beck, o soberano bem é uma "totalidade incondicio6nada”, porque inclui a noção de um fim supremo que une sistematicamente todos os outros fins (unidade perfeita de fins). Quando Kant fala em fim supremo parece aproximar-se daquele que designa um fim tomado como um dever (que como já vimos, tem características diferentes do fim apresentado pela perspectiva teleológica aristotélica) já que aquela noção parece ser indissociável da própria moralidade. Nos termos de Kant, na Doutrina da Virtude da Metafísica dos Costumes, trata-se de "...um fim que possa ser oposto ao fim oriundo dos impulsos sensíveis, ...o conceito de um fim que é ao mesmo tempo um dever...” (Métaphysique des Moeurs, p.658-659). Estaria aí a prova de nossa hipótese inicial onde sistemas deontológicos e sistemas teleológicos, apesar de diferentes, não são necessariamente opostos.

P. Ricoeur se propõe, segundo ele próprio, sem preocupação de ortodoxia aristotélica ou kantiana, defender a primazia da ética sobre a moral, ou seja, da teleologia sobre a deontologia, apesar de reconhecer a necessidade da teleologia passar pelo "crivo da norma” (deontologia). O sistema moral kantiano, ao contrário de Ricoeur, parece não admitir como ponto de partida a teleologia. Assim, por exemplo, como vimos, o conceito de soberano bem, e graças a exigência de totalidade que lhe é inerente, liga o que a Analítica havia separado, admitindo, porém, explicitamente o primado deontológico da moralidade sobre a busca da felicidade. Tomar como ponto de partida a teleologia seria, no mínimo, admitir que nós temos escolha diante desta lei, ou seja, teríamos que admitir que a lei moral é flexível, e se é flexível, os homens estariam desobrigados de segui-la. Se admitíssemos essa flexibilidade, as ações decorrentes disso estariam, no máximo, em conformidade à lei, mas nunca traduziriam o respeito pela lei. Segundo Roger Sullivan, não podemos estar isentos de tais obrigações e nada justifica o não cumprimento da lei, porque a negação do imperativo categórico resultaria na reinvidicação autocontraditória de que a liberdade pode ser compelida (An Introduction to Kant’s Ethics, p.47). Assim, a afirmação de uma possível aproximação entre deontologia e teleologia estabelecida pelo conceito de soberano bem, parece ser, ao nosso ver, tão importante quanto a negação da possibilidade de haver, em Kant, uma primazia da teleologia (de princípios éticos) sobre a deontologia (princípios morais). O próprio "ideal” traduzido pelo conceito de soberano bem poderia se tornar uma quimera se aceitássemos tal primazia, pois, como nos diz Henry Allison, só quando assumimos a realidade da obrigação moral como fato da razão é que reconhecemos, ao mesmo tempo, o dever de nos esforçarmos para a realização do soberano bem (Kant’s theory of freedom, p.67).

4. CONCLUSÃO

Podemos observar que quando Habermas, em sua obra Direito e Democracia, mantém a oposição entre deontologia e teleologia está movido pelo seu interesse em encontrar para as normas jurídicas o papel de mediador para a auto-organização de comunidades jurídicas que se afirmam, num ambiente social, sob determinadas condições históricas. Nesse sentido, e ainda seguindo Habermas, tal oposição também justifica a função mediadora do Direito entre a moral (no sentido propriamente deontológico do termo) e a dimensão ético-política da razão prática em busca de fins coletivos. Mas, na caracterização dos dois sistemas, todos os comentadores e filósofos que utilizamos parecem concordar mais ou menos entre si. Assim, concluímos através desta Pesquisa de Iniciação Científica que existe, dentro do sistema moral kantiano (que em alguns momentos se revela como rigorista), pelo menos uma via de aproximação entre estas perspectivas práticas. Entretanto, apesar de termos tentado comprovar, através de nossa análise sobre o conceito de soberano bem, que um sistema deontológico pode incorporar uma concepção de bem, observamos, em contrapartida, que um sistema teleológico (como o de Aristóteles) não pode comportar um fim que seja tomado como um dever, já que um fim, assim concebido, teria de ser (como nos diz Kant na Doutrina da Virtude da Metafísica dos Costumes, p.658-659) oposto ao fim oriundo dos impulsos sensíveis. Em Aristóteles, efetivamente, o fim seria "...um fim ao qual visa o desejo” (Ética a Nicômaco, livro VI, cap. II, p.342). Todavia, a aproximação estabelecida, fundamentalmente, pelo conceito de soberano bem e o ideal que ele representa dentro da moral kantiana, nos certifica que, apesar da perspectiva deontológica ser diferente da perspectiva teleológica, não há oposição necessária entre estas perspectivas, até porque pensamos que é possível fazer uma leitura correta da moral kantiana abrindo mão do rigorismo, isto é, da oposição entre dever moral e inclinações sensíveis (desejo).

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